Mostra SP: Entrevista com Helvécio Ratton (O Lodo)

Vinicius Machado
SALA SETE
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9 min readNov 3, 2020

O Lodo, novo filme de Helvécio Ratton, é uma obra que mistura elementos do absurdo com realismo. Em um de seus projetos mais ambiciosos da carreira, o diretor, que é formado em psicologia, adapta um conto de Murilo Rubião e expande as discussões para além das questões psicológicas, como o machismo e a fragilidade masculina, seja no trabalho ou em suas relações pessoais. Além disso, é um filme que, à medida dos acontecimentos, se torna um thriller interessante.

No entanto, o filme que deveria ter sido lançado em setembro deste ano, precisou ser adiado para 2021, devido à pandemia. “Considerando que vamos sobreviver a esse período, vamos tentar lançar esse filme em maio”, comenta o diretor, que declara sua paixão à Mostra Internacional de São Paulo, cujo O Lodo está disponível na plataforma Mostra Play. “Acho que este é meu festival nacional favorito, tem muita coisa boa passando”, diz.

O SALA SETE conversou com Helvécio Ratton sobre seu mais novo lançamento, num papo que durou cerca de uma hora, com assuntos que vão desde os elementos de sua adaptação, até a crise política em que se encontra o audiovisual brasileiro. Confira:

O filme tem uma estética curiosa, que se remete a algo mais antigo, formato quadrado, uma fotografia escurecida. Há uma intenção de fazer esse filme se parecer um conto clássico do Murilo Rubião?

Esse conto do Rubião era muito pouco conhecido e, eu, quando estava revendo toda a obra dele, achei O Lodo como uma pequena joia, ele parecia um novelo onde você podia puxar os fios e expandir a história. Ele tinha diversos elementos que poderiam ser trabalhados e bateu muito em mim porque sou psicólogo de formação, embora nunca tenha exercido. Eu estudei muito psicanálise, li muito Freud, e isso sempre esteve no meu horizonte. Quando descobri esse conto, eu percebi essa possibilidade de trabalhar com esses elementos, inclusive como uma crítica até certo ponto na forma de exercer a profissão.

Essa é a primeira vez que trabalhei com o formato quadrado, sempre usei panorâmicas, mas eu tinha a visão de que esse filme era pra ser visto através da fresta por onde esse personagem nos conduzia. De certa forma, íamos entrando no inconsciente deste homem, então essa ideia de trabalhar com uma janela mais fechada foi uma ideia do meu diretor de fotografia porque, no princípio, eu pensava em como os enquadramentos me levariam a essa situação mais fechada, para criar essa angustia que o personagem está vivendo, de estar emparedado, ser um homem sem saída. E eu percebi quando o Lauro fez essa proposta, que além de ter esse aperto do quadro, algo mais sufocante, criava um ar acima dele, que oprimia ainda mais o personagem, que o deixava mais preso nesse espaço, então a ideia veio para tornar isso de forma orgânica na história.

Hoje no cinema, nós temos opções mais livres de escolher os formatos de filme, como Guerra Fria e O Farol, não necessariamente ficar preso a uma tela que preenche todo o espaço, então é você criar formatos adequados a história que você tá contando. Já a paleta de cores, por se tratar de uma história mais sombria, que também usa um humor, nos levou a ela. Também tínhamos a ideia de colocar o Manfredo (Eduardo Moreira) deslocado do tempo. Então é uma história que se passa hoje, temos a cidade uma metrópole urbana de agora, atual, mas ao mesmo tempo ele cria uma certa estranheza em relação ao tempo desse homem. É um personagem antigo, fora dessa época.

O filme também conta com formas geométricas e outras formas estéticas. Houve alguma referência cinematográfica nessa construção?

Eu na verdade não trabalho com referências, mas eu vi alguns filmes junto com a equipe, como por exemplo O Processo, de Orson Welles, que tem sequencias exemplares. Na medida em que o Rubião tem seu lado kafkiano — onde ele coloca o absurdo com uma certa naturalidade no cotidiano — e isso que te faz trabalhar nesse contexto realista, que eu acho, inclusive, que acaba surpreendendo ainda mais. O Rodrigo Fonseca, do Estadão até comentou que o filme era um O Inquilino a la Mineira, é curioso porque eu gosto muito das obras do Polanski e confesso na época revi O Bebe de Rosemary, mas não me lembrava do Inquilino, senão com certeza eu teria revisto.

O uso da geometria foi feito muito porque eu queria enclausurar o personagem, então ele caminha no trabalho em uma passarela reta, ele fica na empresa dele pelos corredores burocráticos. A vida dele é toda emparedada, por isso eu trabalhei dessa forma nos enquadramentos para mostrar como a vida desse homem se dava de uma forma mais opressora.

Você, psicólogo de formação, se aprofundou mais nessas questões psicanalíticas para o filme ou foi tudo fruto de sua bagagem de formação?

Eu usei minha bagagem, usei meu conhecimento do que já havia estudado. Acho que foi importante no sentido de situar bem a figura do terapeuta, afinar os diálogos entre ele e Manfredo. Eu acho que isso foi importante para situar o profissional de forma realista, mesmo sendo um personagem invasivo, ele bate em certas críticas feitas na psicanálise, obviamente não neste nível absurdo. Um caso muito curioso, aliás, aconteceu há uns dias, com a reação de uma pessoa que assistiu ao filme e não conseguiu chegar ao fim, pois se sentiu muito angustiado e parou. Depois retomou e parou de novo. Ele não sabia da questão do tratamento obrigatório, que chegava até na justiça, ou seja, ele se sentiu extremamente incomodado com a situação do Manfredo como paciente, e não conseguiu se penetrar na história com os absurdos que ela carrega. Eu achei a reação muito curiosa, e muitas pessoas me relataram essa angústia ao ver o filme.

Quando eu comecei a trabalhar isso, eu pensei, por exemplo, o corte que o Manfredo tem no pesadelo não veio por conta do pesadelo. O que acontece no peito é exatamente aquilo que provoca o sonho, o médico surge da ferida no peito e não ao contrário. Para mim, funciona mais como um estigma, e eu fui buscar inspiração nesses personagens que sentem esses estigmas de cristo, que acontecem em vários lugares no mundo e nas Filipinas acontece muito, de pessoas que abrem feridas nas mãos como Jesus Cristo teve, feridas no peito onde ele levou as lanças, etc. Então além do ambiente católico que a história envolve, também tem um pouco desses estigmas, é claro que é muito sutil, eu também não quis fechar uma leitura específica, quis deixar em aberto, e tenho recebido muitas leituras diferentes sobre o filme.

Sua filmografia utiliza muito os elementos do fantástico, mas também possui filmes que são mais realistas. Como foi mesclar esses dois estilos num filme só?

Tem um filme meu que se chama A Dança dos Bonecos, onde há uma mágica com os bonecos que se mexem e isso acontece com muita naturalidade, as pessoas se interessam pelos bonecos, viram uma atração, são roubados, etc. Mas não há um espanto por eles se mexerem sozinhos, então eu lido com o fantástico com uma certa naturalidade, coisa que passa por Menino Maluquinho e no Pequenas Histórias, que eu tenho um conto em que as almas saem em procissão, que eu ouvia muito quando criança e tinha muito medo. Eu já trabalhava com os elementos fantásticos em situações cotidianas, mas nunca tinha feito isso da forma que fiz com O Lodo, que foi a primeira vez em que eu enquadrei isso num contexto realista, inclusive físico, algo acontecendo com ele e se materializando. E na verdade eu gosto muito de trabalhar essa mistura do fantástico e do realismo, é algo que me interessa muito, eu quero continuar trabalhando nessa direção.

Então já existem outros projetos em vista?

Eu tinha começado a trabalhar outro roteiro a partir da obra de Rubião, e na obra ele trabalha com o fantástico de duas formas: ele tem um conto que se chama Ex-Mágico da Taberna Minhota, em que o personagem tira do bolso o dono do restaurante. Mas isso é um tipo diferente do fantástico de O Lodo, é diferente de outros contos, em que a fantasia desenrola com naturalidade, que é o que me interessa mais. Esse outro lado exuberante eu já não embarco, mas eu estou disposto a fazer outro filme baseado na obra dele. Eu me encantei muito em trabalhar com esse material e com esse grupo de atores, acho que chegamos numa afinação muito grande porque é um tom difícil de trabalhar, com elementos absurdos, mas em um plano realista. É algo que precisa afinar muito bem e se tiver algum destoo isso pode despencar.

Pode se tornar até uma série de filmes sobre os contos de Murilo Rubião…

Eu cheguei a trabalhar até com treze episódios para ser uma série, mas era mais cara, cada episódio era um cenário, personagens, ambientes, e a série se barateia na medida em que se repete as locações e personagens. Como a série mudava muito, dificultou. E agora eu peguei um projeto com três contos dele que se interligam muito bem, mais nessa onda do realismo fantástico de O Lodo.

Você citou os tons dos personagens e, de fato, há uma tonalidade mais teatral em O Lodo, inclusive com o uso de um elenco que faz parte do Grupo Galpão. Como foi trabalhar com esses elementos mais expressivos?

Eu queria criar uma galeria de personagens atraentes, com alguma estranheza. Já tinha trabalhado com alguns atores do Grupo Galpão e queria um grupo de atores com expressões marcantes e que estivessem à minha disposição. Esse foi um filme que consegui trabalhar antes das filmagens com muita intensidade. Eu chamei a equipe, lemos o roteiro e fomos ensaiando com pequenos grupos, sempre tendo o Eduardo Moreira, que está muito bem, em todos os núcleos. Eu pude prepara-los muito bem. Uma dificuldade foi achar o tom de intepretação, e eu não podia deixar que isso acontecesse durante as filmagens, isso podia me dar problemas sérios de tons diferentes. Então eu me antecipei a isso.

E como a pandemia prejudicou o lançamento do filme?

A pandemia nos atingiu em pleno ar, o filme estava previsto para setembro. Finalizamos ele no início do ano e aí veio a pandemia e tivemos que cancelar o lançamento. Agora nos dedicamos a criar as peças, como cartaz, trailer e outras coisas. Trabalhamos com a data possível de maio, contando que voltaremos à normalidade, com vacina e tudo mais. Mas esse país é tão maluco que parece que vivemos um conto surrealista, com o presidente da república brigando com o governador para tirar a credibilidade da vacina. Mas, considerando que vamos sobreviver a esse período, vamos tentar lançar esse filme em maio e agora na Mostra tá sendo interessante porque há reações muito variadas de vários lugares do Brasil e com relatos muito diferentes.

Você considera lançar o filme em um streaming, por exemplo?

Embora eu ache que o filme seja bastante adequado ao streaming, eu gostaria de passar pelas salas de cinema. É um filme que pode ter uma carreira bacana nas salas e eu acho que não se pode excluir as salas de cinema na trajetória de um filme. É importante ter o público nas salas, até mesmo por ter elementos de humor, isso pede uma sala mais cheia. As respostas vêm melhor com as reações dentro do cinema.

Você tocou em um ponto importante, sobre a política do nosso país. Como um diretor experiente, como você enxerga essa subvalorização da cultura no Brasil, principalmente em relação ao cinema?

O que me dá uma tristeza muito grande é o fato de que estávamos em um momento muito interessante do cinema brasileiro, com vários diretores novos surgindo e filmes muito interessantes. Basta você ver na Mostra os filmes nacionais, é um grupo muito interessante, um conjunto de filmes diferentes e extremamente bem realizados, com propostas diferentes e bem realizados dentro de suas propostas. E num momento forte, com o cinema ganhando prêmios em festivais mundo afora, ganhando reconhecimento interno, presente nas plataformas, etc.

E aí, de repente criar uma guerra ideológica contra o cinema. A forma que se encontrou para se fazer cinema no Brasil é autossustentável, o próprio setor se financia, não é o dinheiro que sai da saúde, da educação, etc. Então a motivação que tem para tentar destruir o cinema brasileiro é meramente ideológico, é uma coisa planejada, e eu fico me perguntando o atraso cultural dessas pessoas, de um Ministro da Economia que é incapaz de ver a força da indústria do audiovisual.

São pessoas tacanhas culturalmente, que não percebem o crescimento do audiovisual como uma indústria que cresce 10% ao ano, com quantidade de empregos que gera. Então não há fundamento econômico para bombardear e destruir a indústria, é algo completamente ideológico. Mas acho que vamos superar. Nós temos uma vocação para o audiovisual no Brasil que é muito forte, que já mostrou que superamos outras crises, como a do Collor, em que interrompeu a carreira de muita gente naquela época. Nós vamos superar, mas é triste que estejamos vivendo esse momento quando estávamos tão bem, voando tão alto.

O Lodo pode ser visto na 44ªMostra Internacional de São Paulo e está disponível na plataforma Mostra Play.

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Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.