Mostra SP: Mosquito

Vinicius Machado
SALA SETE
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4 min readOct 22, 2020

Em 1917, um soldado parte em busca de seu pelotão durante a Primeira Guerra Mundial, o filme é baseado nas histórias que o avô do diretor contou a ele quando criança. Parece familiar, não? Mas, por incrível que pareça, o filme em questão não se trata do filme do diretor britânico Sam Mendes, indicado ao Oscar em 2020 e, mais: as coincidências param por aí entre esta produção e Mosquito, filme do diretor português João Nuno Pinto.

Mosquito traz a história de Zacarias, um jovem português de 17 anos, que se alista no Exército durante a Primeira Guerra Mundial esperando migrar para o combate na França. No entanto, ele é enviado a Moçambique, na África, com a missão de defender a colônia portuguesa da invasão alemã. Neste período, o jovem contrai Malária, é deixado para trás por seu pelotão, mas decide ir em busca para alcança-los, em um caminho desconhecido e repleto de ameaças.

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Filmes de guerra, em sua maioria, busca trazer um tom heroico à sua nacionalidade, mas aqui, Nuno Pinto já deixa claro logo no início de que esta obra não se trata de uma jornada vitoriosa ou patriota. A cena de abertura dos portugueses atracando em Moçambique e utilizando os africanos como montaria para sair da água já é um belo cartão de visitas para tratar uma história sobre colonizador e colonizados. O que é curioso, inclusive, tendo em vista que quase nenhuma obra aborde a ação dos portugueses na Primeira Guerra — ainda mais em expedição na África — e este seja logo um dos primeiros retratos que obra tenta transmitir.

Este processo de desconstrução do nacionalismo se torna cada vez mais evidente quando o diretor busca estudar o personagem de Zacarias, interpretado por João Nunes Monteiro. No início, vemos sua força de vontade para com a guerra, é um garoto jovem, influenciado pela propaganda bélica de uma guerra, não à toa, seu objetivo nunca foi desembarcar em solo africano, mas seguir para a França e combater nas trincheiras. “Eu trago a guerra no pensamento e a pátria no coração”, diz ele. E por mais tímido que o soldado pareça ser no começo de sua jornada, ao longo da trama ele se torna aquilo que foi treinado para ser: um soldado de sangue frio, com atitudes de colonizador com o povo africano, tratando-os como propriedade. Com isso, é interessante termos como protagonista um personagem cujo o espectador gere pouca empatia ou heroísmo pelas suas atitudes. Há um trânsito de sensações e julgamento em relação a Zacarias. O diretor também não se priva de mostrar como funciona sua mentalidade e como isso pode ser destrutivo, seja da tela para fora, ou da tela para a própria tela.

A partir do momento em que o filme parte para selva adentro, Nuno Pinto praticamente abandona a temática de guerra para se tornar uma jornada individual, em um formato que se assemelha a um road movie, usando somente alguns flashbacks de um acampamento militar para lembrar o porquê Zacarias está na condição atual. Com isso, o diretor busca uma imersão cada vez mais profunda, em um processo em que o espectador mergulha nos cenários de Moçambique, sob uma fotografia baseada em luzes naturais tanto em cenários fechados, esses com luzes de lampião, quanto em cenários externos, principalmente em períodos de amanhecer e entardecer. É uma pena, por conta da pandemia, o público não ter a oportunidade de ver este filme em uma tela grande, a experiência seria ainda mais arrebatadora.

Mosquito ainda manipula de forma interessante seu espectador quando parte para sequências que flertam com o abstrato. Por diversas vezes é possível questionar a si se tudo ali aconteceu de fato ou se faz parte dos delírios do protagonista. Uma aproximação religiosa, a passagem por uma tribo — essa talvez a sequência mais arrastada no longa, mas jamais desinteressante — o encontro com animais selvagens, entre outros. A esta altura, a experiência já é tão engrandecedora que as conclusões sobre isso já nem fazem mais diferença, até porque o foco é sempre a forma como Zacarias se comporta e interpreta esta jornada, internamente e externamente, principalmente quando há uma alternância de comando quase constante. Nuno Pito gosta de mostrar que o poder sempre ficará a cargo de quem está em vantagem naquele determinado momento, quase nunca sendo uma verdade absoluta.

E mesmo partindo deste princípio de que há uma constante batalha de poder, Mosquito se mostra, em um contexto geral, um filme anti-bélico, que se aproxima até mesmo do tom de Appocalypse Now, de Francis Ford Coppola, mostrando uma jornada de degradação física e mental em consequência de propagandas a favor do combate para uma juventude que sequer sabe as proporções de uma guerra. E mesmo não estando à frente das linhas de combate, João Lagarto, muito próximo do final, resume bem o espirito do filme: “Ganhamos a guerra. Quer dizer, ganharam eles la na Europa, o que fizemos aqui foi só levar porrada”.

Filme visto na cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

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Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.