Mostra SP: Sibéria e Sportin Life

Vinicius Machado
SALA SETE
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4 min readOct 28, 2020

De uns anos para cá, diversos diretores começaram a escrever suas obras olhando para suas próprias carreiras ou personalidades, como se estivessem revisitando lugares e contemplando seus próprios pensamentos. Clint Eastwood, Martin Scorsese, Quentin Tarantino, Lars Von Trier, e outros diretores, como Abel Ferrara, que cada vez mais mergulha em suas reflexões sobre a vida, como em Tommaso (2019), por exemplo. Agora, o diretor americano busca uma viagem para dentro do subconsciente humano.

Em Sibéria, Clint é um homem atormentado pelo passado e decide se isolar em uma casa nas montanhas. Nesse ambiente frio e hostil, ele vive sozinho, recebendo viajantes e nativos que não falam seu idioma e que visitam sua cafeteria. Durante este período de isolamento, Clint embarca em uma viagem interna por meio de sonhos, memórias e delírios.

No seu sexto filme com Willem Dafoe, Ferrara busca talvez aquele que seja seu filme mais abstrato e contemplativo, sem oferecer respostas ou até mesmo perguntas sobre seu personagem ou o cenário em questão. Em determinado momento, há uma sugestão de que Clint está morto e precisa seguir sua jornada e assistir sua vida passar perante seus olhos. A conclusão, no entanto, nunca é 100% certeira.

O diretor considera os cenários deslumbrantes como parte da mente de Clint. Se temos a concepção de que há uma vastidão de pensamentos, Ferrara exponencia isso ao abordar as montanhas, muitas vezes em planos abertos, como se o protagonista estivesse na sua busca pelas memórias. Quanto ele as alcança, a composição das cenas muda para uma fotografia menos fria e ambientes mais fechados, ora escuros, ora mais claros. Arrastado por um trenó com cachorros, o personagem faz visitas a diversos momentos de sua vida, desde a infância até sua fase adulta. O tom autorreflexivo do diretor se torna ainda mais evidente quando sua filha e esposa, Anna Ferrara e Cristina Chiriac, integram o elenco desempenhando papéis fundamentais na trama.

Mas embora seja interessante este mergulho em uma mente desconhecida, principalmente pelas temáticas psicanalíticas das situações — a relação com a mulher e, logo em seguida sua mãe, por exemplo — há uma certa distância do espectador com todos esses pensamentos. O aprofundamento somente pelo aprofundamento se torna algo superficial quando o público busca algum significado ou identificação para se encontrar no personagem. Neste sentido, há, talvez, uma desconexão com a real proposta do diretor com a execução do filme, principalmente quando se trata da atuação de Willem Dafoe, extremamente indiferente com tudo o que acontece em sua vida. Por mais mórbido ou sugestivo que essas atitudes possam ser, isso impacta diretamente na experiência, como se houvesse uma obrigação, tanto de Dafoe, quanto do espectador, de acompanhar essa jornada.

Ainda assim, os personagens que compartilham as lembranças de Clint se tornam interessante com diálogos pontuais sobre a reflexão que o momento pede. Em um determinado momento, quando até então suas memórias eram ligadas à melancolia, um dos personagens, sugestivamente religioso, questiona o protagonista. “Você não é um santo, então seja humano, aproveite, que se dane, mexa sua bunda, dance”.

Sporting Life

Ao lado de Sibéria, está o documentário realizado por Abel Ferrara, ao lado de Willem Dafoe, durante o Festival de Berlim. Nele, o diretor compila e mescla sequências de seus filmes com sua jornada em uma Europa antes, durante e depois da pandemia. A produção vai desde seus momentos em que atende jornalistas até momentos de descontração. Ainda assim, Ferrara mostra a mudança repentina de rotina e também mescla dois mundos completamente distintos, e como isso se mistura em sua própria obra. Como por exemplo no momento em que um jornalista o questiona se esta é sua fase mais sombria, e como recorte, o diretor sobrepões estas falas com cenas de hospitais e vítimas da covid-19, como se não houvesse nada mais sombrio que a realidade.

Sibéria e Sportin Life se complementam em uma obra que diz muito mais sobre seu autor, que vive buscando reflexões internas, principalmente neste momento de carreira, do que o mundo real ou abstrato. Embora haja uma frieza constante, existem pontos cruciais na compreensão do diretor que podem refletir nos pensamentos do espectador.

Filme visto na cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

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Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.