O Irlandês e as consequências de uma vida de crime

Vinicius Machado
SALA SETE
Published in
5 min readNov 13, 2019
Imagem: Netflix

Durante a década de 1960, os Estados Unidos viveram uma ascensão sindicalista muito forte, que ajudou a fazer crescer os direitos da classe trabalhadora. Em contrapartida, esse foi um período um tanto quanto controverso na história americana, já que essas instituições estavam diretamente ligadas ao crime organizado, como o Sindicato dos Motoristas de Caminhão, liderados por Jimmy Hoffa, cuja gestão foi marcada por denúncias de corrupção, práticas de intimidações e até um possível envolvimento com o assassinato do presidente Kennedy. Um de seus grandes confidentes foi Frank Sheeran, um veterano de guerra que virou funcionário de alto escalão no sindicato enquanto trabalhava para Hoffa e, ao mesmo tempo, para a família Bufalino, composta por membros da máfia italiana.

Essa história é contada no livro O Irlandês: Os Crimes de Frank Sheeran a Serviço da Máfia, de Charles Brandt, caiu nas mãos do roteirista Steven Zaillian (Gangues de Nova York e Moneyball) e, nada mais, nada menos que Martin Scorsese.

A história de O Irlandês segue a mesma narrativa do livro, com Sheeran (Robert De Niro) no ponto central da trama, a contando em primeira pessoa, desde sua participação na Segunda Guerra, passando por sua profissão de transportador de carne, até o momento em que conhece Russel Bufalino (Joe Pesci) e, posteriormente, Jimmy Hoffa (Al Pacino).

Scorsese, além de ser morador de Little Italy quando criança, onde viu muita coisa acontecer com gangster poderosos, é também responsável por alguns dos grandes filmes de máfia da história de Hollywood, como Os Bons Companheiros, Cassino e Os Infiltrados. Não é exagero dizer que ele conhece como ninguém esse universo, como também não é exagero afirmar que a abordagem desse filme era o que faltava nesse currículo tão extenso de histórias sobre o crime organizado.

O Irlandês possui um tom diferente do que estamos acostumados em filmes do gênero, muito menos glamourosa, mas não menos impactante. Enquanto os clássicos contam os fascínios e as conquistas do mundo do crime, aqui o tom é totalmente diferente, muito mais visceral e voltado para as consequências de se viver essa vida. Em momento algum os personagens se encontram em pleno conforto e, aos poucos, a trama vai deixando seus sinais do que isso quer dizer.

Imagem: Netflix

Muito disso se deve à montagem impressionante de Thelma Schoonmaker, que conta uma história dividida em três linhas do tempo, com direito a De Niro, Pesci e Pacino perfeitamente rejuvenescidos por CGI em uma delas. A cronologia se afunila e logo se encontram, sem definir exatamente quanto tempo se passou ou em que período está acontecendo. Mesmo assim, tudo fica tão fluído que nada se torna confuso.

E apesar de possui 3h30 de duração, parece ser impossível olhar para qualquer trecho do filme e pensar em retirá-lo. Tudo é colocado e distribuído no seu devido lugar minunciosamente, que une roteiro, direção, edição e atuações. Todos sabem o que querem dentro dessa duração e não é feita por pura vaidade, principalmente para Scorsese, que compreende esse universo e tenta dar significado a tudo que se passa em tela.

O diretor passa mais de duas horas para desenvolver e contar as histórias que caminham para o seu ponto essencial. Tudo muito seco, cru, mas menos violento do que aparenta, embora haja diversas inserções de carros explodindo e tiros ecoando em execuções completamente orgânicas, sem o menor alarde. A violência é somente um complemento de um enredo muito mais complexo e profundo, que se mostra dessa forma por meio dos diálogos fortes e imponentes de cada personagem.

E quando o filme dá a impressão de que tudo aquilo é só sobre contar uma história, é na sua última hora em que todo o processo passa a fazer sentido em termos de construção de narrativa. É ali que o filme mostra seu verdadeiro objetivo e o que todos os sinais durante todo esse tempo significam, desde as relações de Frank com a família, até mesmo aos breves obituários de cada personagem novo que aparece, com ano de morte e como morreram. A melancolia e a humanização tomam conta e a impressão é de que há um filme totalmente novo, mesmo ligado aos acontecimentos anteriores.

E é justamente nesse momento em que aparecem as atuações e o peso do elenco. Os três juntos formam um tríplice do mais alto nível em termos de atuação, que ao longo do filme vão demonstrando seus próprios dilemas e cansaços com o peso de suas decisões e, naturalmente, de suas respectivas idades.

Os acontecimentos históricos dos EUA estão ligados à história de O Irlandês (Netflix)

Robert De Niro é o coração do filme e isso fica ainda mais claro nos últimos atos. Uma das cenas, o momento em que ele precisa fazer uma ligação, é possível ver o quão é impressionante sua força em tela. O silêncio de seu personagem se mostra ainda mais poderoso que suas falas, ao contrário de Joe Pesci, que constantemente se mostra ameaçador por cada linha dita. É muito bom ter de volta um ator desse calibre e seu retorno não poderia ser melhor.

Ao lado desses dois pilares, está Al Pacino, que demora a surgir, mas logo em sua primeira aparição, já mostra a que veio, num discurso sindical forte e político. Pacino é responsável por um personagem enérgico, que mesmo tendo homens de confiança, segue seu próprio intuito, o que o faz entrar em processos de ascensão e queda constantemente.

Al Pacino e sua atuação imponente (Netflix)

Assim como Frank Sheeran fez com Charles Brandt, De Niro faz o mesmo com o espectador, confidencia sua história como se fossemos seus últimos companheiros. Em uma determinada sequência, em que ele conversa com Joe Pesci, já perto de seu fim, ele olha constantemente para a câmera. Ali, ele passa todo o seu desconforto com o diálogo e traz o público para si, como se quisesse dizer que a partir daquele momento, somos nós e ele, somente. E é exatamente essa a essência de O Irlandês. A solidão e o isolamento em consequências de seus atos, o preço a ser pago pelos próprios atos e pela escolha de vida. Família, amigos, dinheiro, o que realmente valeu a pena, apesar de tudo?

Por fim, as 3h30 não se tratam apenas de duração, mas de como a jornada é importante para contar uma história que só mostra sua verdadeira face ao final. Martin Scorsese, aos 76 anos, não só entrega uma de suas obras mais íntimas, como mostra que ainda é possível amadurecer os conceitos dentro de sua própria natureza. A trama pode ser real e baseada numa rotina cheia de crimes, mas a verdade é que idade chega para qualquer um, e o peso das decisões durante a vida vão acompanhar esse processo, seja ele melancólico, ou não.

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Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.