Apologética para a glória de Deus — John Frame (Resenhas #19)

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
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6 min readMay 24, 2024

Todo o cristão que começa sua busca por aprofundar-se nos aspectos da sua fé, logo se depara com a disciplina da apologética. Usualmente este contato acontece com abordagens mais evidencialistas através de autores como William Lane Craig ou R. C. Sproul. A abordagem evidencialista é caracterizada pela busca de provas contundentes, considerações probabilisticas e, principalmente, pela pressuposição de que há um ponto de contato entre o crente e o descrente no campo da razão, onde ambos podem apresentar igualmente seus argumentos em um tipo de “terreno neutro comum”. As provas para o Cristianismo neste terreno saem da própria razão e observação da natureza, ou seja, da revelação natural, e buscam evitar assumir a autoridade bíblica no início do argumento para evitar o raciocínio circular, buscando provar essa autoridade por meio de silogismos e evidências externas.

O teólogo reformado Cornélius Van Til argumentou em muitas das suas obras sobre os problemas dessa abordagem, especialmente em seus pressupostos, como o do ponto de contato. Van Til começou uma escola apologética buscando uma abordagem mais bíblica, de uma perspectiva reformada: a apologética pressuposicionalista. É nessa tradição que se encontra o livro Apologética para a glória de Deus, de John Frame, um ex-aluno de Van Til. O objetivo do livro é apresentar uma introdução a uma apologética centrada na Palavra e que assume os pressupostos bíblicos ao apresentar e defender a fé cristã.

O livro foi publicado originalmente em 1994 e chegou no Brasil apenas em 2010, com uma capa que poderia ser melhor e pede uma nova edição. Mesmo sendo uma introdução e contendo apenas 180 páginas de conteúdo (além de 28 páginas de notas de rodapé que contribuem muito no conteúdo), o livro é, dito pelo próprio autor, “escrito para pessoas aptas para a leitura de material acadêmico de nível universitário que estejam seriamente dispostas a resolver questões que apresentam certo grau de dificuldade”. Não se trata, portanto, de uma leitura trivial ou de um manual de “como fazer” apologética, mas uma discussão séria sobre os pressupostos, metodologias e argumentos utilizados por essa tão importante disciplina da teologia.

O livro possui 9 capítulos que apresentam as bases da apologética pressuposicionalista, assim como lidam com o conceito de prova e das características defensivas e ofensivas da apologética.

1. Apologética: as bases

Frame começa argumentando que existe um jeito bíblico de fazer apologética. Tudo o que envolve as argumentações sobre a fé (provas, defensivas ou ofensivas) deve ser feito baseado nas escrituras, ou seja, “a revelação de Deus tem de governar a nossa aproximação apologética” (p. 17).

O autor, então, lida com a objeção de que partir da escritura para defender a escritura seria um argumento circular. Ele mostra que, na verdade, tudo exige argumento circular, uma autoridade final. Tanto o crente quanto o descrente pressupõe uma epistemologia, seja ela secular ou cristã. Todo o pensamento exige uma fonte de autoridade que seja autoevidente.

O entendimento de apologética apresentado por Frame a aproxima consideravelmente da pregação do Evangelho. Para ele, “a apologética enfatiza o aspecto da persuasão racional, enquanto a pregação enfatiza a busca de mudanças piedosas na vida das pessoas. Contudo, se a persuasão racional é uma persuasão do coração, então significa a mesma coisa que mudança piedosa. Deus é o que persuade e converte, operando por intermédio de nosso testemunho”.

2. A mensagem do apologeta

A mensagem do apologeta, em última instância, nada mais é do que a totalidade da Escritura aplicada às necessidades de seus leitores.

No segundo capítulo, Frame apresenta a mensagem das Escrituras a partir de duas perspectivas: o Cristianismo como filosofia e o Cristianismo como boas-novas.

Ao apresentar o Cristianismo como filosofia, o autor apresenta as características e implicações filosóficas da mensagem cristã na metafísica (maior parte do capítulo), epistemologia e ética. Já como boas novas, a mensagem da cruz e o dever do evangelismo são apresentados.

3. Apologética como prova: algumas considerações metodológicas

A fé não é crença na ausência de evidências; antes, a fé honra a Palavra de Deus como suficiente.

O assunto desse capítulo, segundo Frame, é o “encontro de uma base racional para a fé”. Ele argumenta que as razões que precisamos apresentar para a verdade bíblica devem ser também bíblicas. Diante disso, não podemos ter um conceito de “prova” que seja algum argumento infalível e inegável por qualquer pessoa. Biblicamente, o problema humano não é, primariamente, de convencimento intelectual, mas de disposição do coração. A tarefa da apologética não é colocar o descrente numa posição que que fique óbvio que ele deve crer. Segundo a Bíblia, ele já está nessa posição.

Considerando, portanto, que não existe uma prova definitiva, mas envolve a disposição do coração. A apologética deve levar em conta “a específica situação do inquiridor — sua educação, interesses, a própria questão, etc”. A apologética deve ser mais preocupada com isso do que com alguma prova racional definitiva e universal. Nesse capítulo, o autor também apresenta um dos argumentos centrais de Cornélius Van Til, o “Argumento Trascendental”, lidando com o que concorda e o que questiona sobre essa abordagem de Van Til.

Finalmente, o autor faz algumas críticas a apologética evidencialista, especialmente no seu conceito de prova e os argumentos probabilísticos dos argumentos (muito utilizados por Craig). Segundo Frame, as Escrituras não dão espaço para uma apologética probabilística, mas de certeza epistemológica. A fé não pode ser apresentada como uma aposta, mas como uma disposição do coração.

4. Apologética como prova: a existência de Deus

Nesse capítulo, John Frame apresenta o seu argumento pressuposicional para a existência de Deus, assim como lida com os argumentos filosóficos e evidenciais mais comuns, como o ontológico, cosmológico e teleológico. Inclusive, sobre estes, mostra que existe uma apordagem pressuposicionalista desses argumentos e eles não precisam ser totalmente descartados ou evitados. Nisso, de certa forma, Frame tem uma abordagem mais equilibrada que seu mestre, Van Til.

5. Apologética como prova: provando o Evangelho

Continuando o raciocínio do capítulo anterior, o autor argumenta a favor do Evangelho, lidando com a crítica bíblica e a veracidade do conteúdo do próprio texto. O objetivo é demonstrar como defender a mensagem bíblica de forma racional, mas sem precisar encontrar elementos estranhos ao texto para tal. Isso não quer dizer não usar de ferramental histórico, manuscritológico e outros, mas não trazer fontes de autoridade externas.

6. Apologética como defesa: o problema do mal, 1

Frame começa argumentando sobre a existência do problema do mal, porque, sob a perspectiva de outros autores cristãos, como Jay Adams, não existe realmente o problema do mal, que a Bíblia responde diretamente. Para Frame, no entanto, o problema existe e as Escrituras não dão a resposta tão diretamente quanto Adams afirma. O foco desse capítulo é lidar com outros argumentos sobre o mal, como o livre-arbítrio, fraqueza divina, melhor mundo possível e outros.

7. Apologética como defesa: o problema do mal, 2

O autor, após lidar com os argumentos mais comuns sobre o problema do mal, apresenta uma longa e elaborada resposta bíblica para tal, mas que não busca dar uma resposta racionalmente definitiva, visto que isso violaria a própria ação de Deus nas Escrituras. Para Frame, “não temos uma resposta teórica completa para o problema do mal. O que temos é um forte encorajamento para confiar em Deus em meio a sofrimentos inexplicáveis”.

8. Apologética como ofensiva: crítica da descrença

O penúltimo capítulo é dedicado ao aspecto ofensivo da apologética pressuposicionalista. O autor “ataca” os pressupostos das crenças não cristãs, especialmente o ateísmo, e mostra que ele depende de pressupostos “emprestados” do cristianismo para sobreviver, pois não pode subsistir internamente de forma coesa. Considero esse um dos melhores capítulos do livro e que apresenta muitos aspectos da apologética pressuposicionalista.

9. Ao falar com um estranho

O último capítulo é mais um exemplo de um diálogo “simulado” entre um crente e descrente partindo de uma apologética pressuposicionalista. O objetivo do autor não é ser realista quanto ao tom ou estilo do diálogo, mas mostrar como algumas abordagens podem ser feitas, principalmente de forma mais personalizada para o interlocutor.

O livro encerra com dois apêndices, um respondendo ao ministério de Ligonier, de R. C. Sproul, que apresenta uma abordagem reformada da apologética evidencialista e que critica o pressuposicionalismo em alguns pontos. O segundo apêndice é uma réplica de Jay Adams sobre as críticas ao seu posicionamento da existência de um problema do mal.

Considero esse um excelente livro para aqueles que começaram a estudar mais a Bíblia e começaram a observar um certo distanciamento entre as argumentações teológicas e as argumentações apologéticas clássicas. Não podemos, como muito foi feito na Idade Média, pregar um suposto deus da metafísica e chamá-lo de Deus cristão. Toda a nossa argumentação deve ter a Bíblia como fonte de autoridade.

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).