As inconveniências do Natal
Fui convidado a fazer uma pequena reflexão sobre “algum aspecto no natal”. O nascimento de Cristo e seus desdobramentos é um assunto tão rico que escolher um “aspecto” para refletir é um desafio. Voltei-me para a Bíblia e reli o nascimento de Jesus como relatado em Lucas 1–2. Percebi que, desde o início, a história é cheia de inconveniências. De um ponto de vista humano, as coisas claramente não acontecem como esperado e tudo parece ter um gosto amargo e doce ao mesmo tempo, pelo menos para aquele momento.
A primeira coisa que Lucas nos conta é o anúncio do nascimento de João Batista para seu pai, Zacarias. Um anjo aparece para Zacarias e, dentre outras coisas, anuncia:
Fará retornar muitos dentre o povo de Israel ao Senhor, o seu Deus. E irá adiante do senhor, no Espírito e no poder de Elias, para fazer voltar o coração dos pais a seus filhos e os desobedientes à sabedoria dos justos, para deixar um povo preparado para o Senhor. (Lucas 1:16–17 NVI)
O anjo está dizendo que João era aquele que foi profetizado em Malaquias 4:5–6, que diz:
Vejam, eu enviarei a vocês o profeta Elias antes do grande e temível dia do Senhor. Ele fará com que os corações dos pais se voltem para seus filhos, e os corações dos filhos para seus pais; do contrário, eu virei e castigarei a terra com maldição.
A vinda de João, portanto, possuía dois aspectos: soteriológico (que se refere à salvação) e escatológico (que se refere ao fim das coisas). Ao anunciar João, o anjo estava anunciando a vinda do próprio Deus, arrependimento, salvação e também anunciava a proximidade do “grande e temível dia do Senhor”. Era um alerta para o “início do fim”, salvação e julgamento, doce e amargo.
Logo adiante no relato, temos o anúncio da gravidez para Maria. Uma moça provavelmente muito jovem, recebe um anjo em sua casa que anuncia uma gravidez. Essa gravidez coloca Maria em uma situação extremamente delicada. Ela era virgem e estava prometida para o casamento. O anjo diz que ela era agraciada, carregava o rei do universo no ventre, o salvador do seu povo. Ao mesmo tempo, porém, a notícia trazia inúmeras dificuldades e inconveniências pessoais e sociais.
O tempo passa e em Lucas 2 temos o nascimento de Jesus. Sabemos o quanto um governo pode ser inconveniente. Imagine alguns burocratas decidirem um censo que obrigasse um marido a levar sua mulher grávida para uma longa viagem — que alguns estimam ser de até 4 dias. Talvez muitas coisas estivessem já prontas em casa para o nascimento da criança. Já não bastava todas as inconveniências da gravidez inesperada de Maria, agora uma viagem.
E é em Belém, a cidade de Davi, onde era prometido que o rei nasceria, Jesus decide nascer. A cidade em si era politicamente insignificante, mas muitos já sabiam que de lá viria o rei de Israel. Chega o momento, então. Finalmente o rei tão esperado está para nascer, mas a cidade não tem lugar para ele. Mais uma inconveniência. O rei nasce em sua cidade, porém falta lugar. Seu primeiro berço é o local onde a comida para os animais é posta: uma manjedoura. Do trono dos céus, o Deus Filho desce, se esvazia e se humilha, encarna como um de nós e seu primeiro trono aqui ao nascer é um cocho.
O Deus-menino sustentava o universo de uma manjedoura. Entretanto, sua glória não deixou de ser percebida. Anjos surgem gloriosamente cantando: “glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens aos quais ele concede o seu favor” (Lucas 2:14). O rei, salvador, Deus forte, príncipe da paz, Emanuel, chegou a este mundo. Um exército celestial anuncia que Deus está conosco e nos traz paz.
A história ainda continua. Conhecemos Simeão, um homem que Deus prometeu que ele veria o Messias antes de morrer. Ao encontrar o bebê Jesus no templo, Simeão proclama uma profecia sobre Jesus:
Este menino está destinado a causar a queda e o soerguimento de muitos em Israel, a ser um sinal de contradição, de modo que o pensamento de muitos corações será revelado. Quanto a você, uma espada atravessará a sua alma. (Lucas 2:34a-35 NVI)
Aquele bebê traria a queda e elevação de muitos em Israel. Para uns, portanto, o nascimento de Jesus era uma notícia terrível, para outros, porém, paz com Deus e salvação. O Deus encarnado estava destinado, desde seu nascimento, a experimentar e causar tanto o doce quanto o amargor.
Destinado a ser alegria de uns e temor para outros, nascido de uma gravidez inconveniente, de um parto difícil e humilhante feito na cidade real que não tinha lugar para o Grande Rei. Tendo como primeira cama o lugar onde os animais comem, é recebido por um exército de anjos que canta. De um ponto de vista humano, certamente esse não era o parto planejado por Maria. Além disso, Simeão também profetiza o sofrimento futuro de Maria. Uma espada atravessaria a sua alma. A vida dela (e a de Jesus aqui na terra) continuaria a ser cheia de sofrimentos e inconveniências. Ela veria seu filho, o grande rei, ser traído e morrer nú e humilhado.
Sabemos, porém, que tudo o que aconteceu foi meticulosamente planejado e decretado por Deus. Deus escolheu se humilhar e se submeter às mazelas e inconveniências desse mundo desde sua concepção no ventre de Maria. Eis então o aspecto do Natal que quero trazer hoje:
Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado. Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna. (Hebreus 4:15–16)
Não vivemos ainda a vida que gostaríamos. Ansiamos pelo fim da maldade e sofrimento. Talvez estamos passando o natal separados dos que amamos, enfrentando doenças ou vivendo luto. Todavia, é visível a mão amorosa de Deus nos guiando. Temos no nascimento de Jesus o grande sinal desse amor.
Jesus conhece nossas fraquezas, dificuldades e frustrações. Ele passou por elas desde seu nascimento e não pecou. É por causa da humilhação que o Deus vivo se submeteu e se expôs que podemos ter a confiança de que encontramos graça, misericórdia e socorro em Deus. O natal, com o Deus bebê, grita: “Tenham ânimo! Eu venci o mundo” (João 16:33b)
Seja o que for que nos espere para o próximo ano — benção ou tragédia -, podemos ter confiança de que Ele conhece nossas fraquezas e nos dará graça. O Cristo que nasceu, se humilhou, sofreu e morreu também ressuscitou e vive. Porque ele encarnou e sustentou o universo deitado em uma manjedoura como um bebê frágil, podemos ser gratos, agraciados e esperançosos. Por que Ele vive, podemos crer no amanhã. Porque Jesus nasceu e está hoje no céu à direita do Pai, como um homem que nos representa lá, podemos dizer e desejar:
Feliz natal!