Entendes o que lês? — Gordon Fee e Douglas Stuart (Resenhas #11)

Um guia para Entender a bíblia com auxilio da Exegese e da Hermenêutica

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
8 min readApr 22, 2021

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Capa da publicação
Capa da publicação

Publicado pela editora Vida Nova e com 336 páginas, o livro Entendes o que lês? é uma ótima ferramenta para aqueles que desejam entender melhor a Palavra de Deus, lendo-a com respeito e devoção necessárias, buscando extrair dela aquilo que Deus e seus autores humanos transmitiram.

Esta resenha será um pouco mais detalhada que as outras, especialmente nos capítulos sobre os gêneros literários da Escritura. O propósito, além de apresentar meu julgamento sobre a qualidade da obra, é também expor breves introduções ao tema de cada capítulo.

Visão geral

Diferente do Introdução à Hermenêutica Bíblica, Fee e Stuart não distinguem quais partes foram escritas por um ou pelo outro, sendo todo o livro escrito em conjunto. Os pontos discordantes entre os autores são suprimidos ou brevemente mencionados. O propósito principal do livro é ensinar ao leitor como melhor interpretar a Bíblia dentro de cada um dos seus estilos literários, partindo do pressuposto de sua autoria divina, infalibilidade e sendo revelação de Deus. É um livro sobre como podemos fazer uma teologia bíblica correta para nossa vida pessoal e em comunidade sem tirar do texto aquilo que ele não está dizendo.

O conteúdo

O “enredo” básico da história bíblica é este: Deus, o criador, criou o homem para seu nome — à sua própria “imagem” — , para que, como portador de sua imagem, fosse seu mordomo na terra que ele criou para benefício desse próprio homem. Mas um inimigo entrou em cena e persuadiu o homem a corromper “sua imagem”, e assim ele se tornou inimigo de Deus. O desfecho é a longa história da redenção, como Deus resgatou seu povo da prisão do inimigo, restaurou-o à sua imagem e, por fim, irá restaurá-lo a “um novo céu e uma nova terra”. (Pg. 111)

O livro é composto por 13 capítulos, sendo os dois primeiros para aspectos introdutórios e o restante para o estudo dos diversos gêneros literários presentes na Bíblia.

Capítulos 1 e 2: Aspectos introdutórios

O primeiro capítulo é uma defesa do estudo da intepretação. Mesmo que não percebamos isso, já somos intérpretes de tudo o que lemos e observamos, tornando ainda mais necessário o entendimento de como interpretar corretamente tudo o que está em nossa volta. Com isso, a Escritura deve ocupar um papel especial em nossa preocupação hermenêutica, porque é revelação de Deus a nós, dada por Ele via comunicação verbal. Além disso, os autores dedicam o primeiro capítulo para definir alguns conceitos, dentre os quais eu destaco dois:

  1. Exegese: Segundo os autores, “a exegese é o estudo cuidadoso e sistemático da Escritura para descobrir o significado original, o significado pretendido. (…) É a tentativa de escutar a Palavra do mesmo modo que os destinatários originais devem tê-la ouvido” (Pg. 31).
  2. Hermenêutica: Ainda que, em sentido mais técnico, a hermenêutica inclua a exegese, os autores conscientemente fazem uma distinção, definindo hermenêutica como o “fazer perguntas acerca do significado da Bíblia ‘aqui e atualmente’” (Pg. 37). Alguns chamariam tal definição de aplicações ou implicações, mas todo o livro segue essa distinção entre Exegese e Hermenêutica estabelecida pelos autores no início.

Destaquei as definições desses dois termos pois nenhum outro livro de hermenêutica que li utilizou-as dessa forma. A primeira tarefa do estudante de hermenêutica e exegese é ter em sua mente bem claro o que o autor da obra sobre hermenêutica quer dizer sobre esses termos para que então consiga compreender corretamente o que está sendo estudado.

O segundo capítulo é uma extensa discussão e análise de traduções bíblicas. Infelizmente as traduções analisadas e classificadas pelos autores são traduções para o inglês com ocasionais notas de rodapé dos editores fazendo referência a alguma tradução equivalente em português. Ainda assim, a discussão é extremamente válida e ajuda o leitor, mesmo brasileiro, a entender melhor os motivos das diferenças entre as traduções e escolher a tradução que melhor encaixe com seus propósitos em cada caso. Creio que um problema desse capítulo seja o fato de que a tradução mais criticada seja a King James Version e suas derivadas, cujas polêmicas envolvendo elas estão um pouco distantes do contexto brasileiro.

Capítulos 3 a 13: Lendo a Bíblia em seus estilos literários

Não é novidade que a Bíblia é um livro composto por vários outros livros e cartas e possuindo diferentes gêneros literários. Cada um desses estilos deve ser interpretado dentro dos seus limites semânticos. Cada gênero literário possui um capítulo, exceto pelas epístolas, que os autores dedicam dois capítulos porque apresentam neles informações válidas para os capítulos seguintes nos outros gêneros. São eles:

  1. Epístolas: É o primeiro gênero literário tratado pelos autores e muito do que é dito aqui é utilizado também como base para a interpretação dos outros estilos, pois são mencionadas muitas regras gerais de interpretação, como a análise contextual e conclusões doutrinárias. As epístolas são um estilo específico de carta enviada pelos autores do Novo Testamento para indivíduos e/ou alguma comunidade ou um grupo de comunidades. São caracterizadas por uma certa informalidade na escrita, contendo alguns pontos de fácil entendimento, já outros ambíguos e dependentes do conhecimento prévio dos leitores originais pressuposto pelo autor. Além disso, as Epístolas não representam um gênero literário homogêneo, pois seu estilo varia bastante dependendo do autor e até mesmo da ocasião do autor no momento da escrita.
  2. Narrativas do Antigo Testamento: As narrativas do Antigo Testamento nos parecem muitas vezes distantes, como se fossem lendas ou histórias completamente desconectadas da nossa realidade, com as quais possuímos pouca identificação além de pequenas “lições de moral”. No entanto os autores destacam que, para os cristãos, “o Antigo Testamento é a nossa história espiritual, as promessas e a vocação de Deus para Israel são as suas [leitor] promessas e a sua [leitor] vocação histórica” (Pg. 110). Isso não significa que todas as promessas, até mesmo as condicionais, são aplicadas diretamente para nós, mas que, como parte do povo de Deus assim como os Israelitas do Antigo Testamento, a história deles é também nossa história e deve ser lida como tal, com toda a prudência hermenêutica exigida. Além disso, os autores destacam que nem tudo o que é relatado nessas histórias são coisas aprovadas por Deus, mas revelam a podridão do coração de um povo quebrado e sua necessidade de salvação. No final, “Deus é o herói de todas as narrativas bíblicas” (Pg. 130).
  3. Atos: Ainda que o livro de Atos não seja um gênero literário bíblico e se aproxime muito das narrativas, os cristãos não costumam ler o livro da mesma maneira que os livros históricos. Além disso, muitas divisões na igreja surgiram por diferentes interpretações desse livro. Por esse motivo, os autores dedicam, um capítulo para lidar com as narrativas de Atos de maneira especial, nos fazendo atentar para as inúmeras seletividades que fazemos na leitura do livro por causa de nossas posições teológicas prévias.
  4. Evangelhos: O ponto principal da hermenêutica dos evangelhos é lembrar que eles não são biografias, mas relatos sobre a vida de Jesus tendo propósitos teológicos como motivação. Ou seja, cada autor destaca aquilo que acha importante para os propósitos e ênfases que entende para sua obra. Isso explica as variações entre as mesmas histórias nos evangelhos sinóticos, assim como ênfases e omissões.
  5. Parábolas: A interpretação das parábolas contadas por Jesus sempre foi um desafio para a Igreja. Alguns buscam interpretar de forma puramente alegórica, outros procuram sempre lições de moral do ponto de vista humano, enquanto outros ficam sem entender pela distância cultural com os tempos de Jesus. Os autores fazem uma abordagem excelente sobre a forma que devemos buscar interpretar essas histórias contadas por Jesus e como até mesmo os títulos que damos a essas histórias atrapalham nossa compreensão.
  6. Lei(s): Uma das grandes dificuldades dos cristãos na interpretação do Antigo Testamento é a aplicabilidade ou não das leis de Israel para o povo de Deus de hoje, a Igreja. Quais são as relações de continuidade e descontinuidade? Devemos entendê-las como princípios ou como normas? Existe, no propósito dos autores originais, qualquer intenção de tripartição da lei (cerimonial, moral e social)? Esse capítulo é uma ótima introdução ao assunto.
  7. Profetas: Este é um dos capítulos que os autores mais se colocam em posição de humildade diante do texto, reconhecendo as inúmeras variações de interpretações das profecias e as enormes dificuldades que esses textos apresentam. Os profetas não eram simplesmente videntes do futuro, mas pessoas que traziam a Palavra de Deus para o seu momento e futuros próximos e distantes. Eles escreveram de várias formas, seja em pequenos oráculos “desorganizados”, em narrativas maiores ou ainda em poesias. Muitas vezes o que eles viam e escreviam correspondia a uma visualização única de uma sequência de momentos no tempo, fazendo com que, ao nosso ver, muitas das profecias tenham “dupla aplicação”. O grande alerta para este capítulo é a prudência e o cuidado ao ler esses textos.
  8. Salmos: Sendo provavelmente o livro do Antigo Testamento mais conhecido e amado pelos cristãos, Salmos é uma coletânea de poemas, músicas, lamentações, louvores e imprecações registradas por pessoas do povo de Israel em diferentes fases da sua história. Grande parte deles não possui títulos e indicações de contexto, tornando sua leitura mais difícil em alguns aspectos. No entanto, pelo seu caráter bastante profundo como expressão dos sentimentos humanos diante de Deus, muitos dos textos são independentes dos seus contextos e autoria e nos auxiliam a expressar para Deus o que estamos passando. Os autores trabalham com os diferentes tipos de salmos e, inclusive, dão uma atenção especial para os difíceis salmos imprecatórios.
  9. Sabedoria: Os livros de sabedoria são Jó, Provérbios, Cantares e Eclesiastes. Os autores destacam que não são livros de promessas ou garantias de coisas que Deus fará e que não podem ter trechos usados isoladamente do seu contexto sapiencial. Jó precisa ser lido com cuidado pois nem sempre o que Jó e seus amigos falam está correto, visto que Deus os condena no final do livro pelo que falaram. Provérbios é um livro de “sabedoria para a vida comum” e não um livro de promessas de que as coisas sempre serão daquele jeito. Cantares não pode ser tratado como uma alegoria entre Cristo e a Igreja ou Deus e Israel, mas lido como é: um livro em louvor do amor conjugal e suas implicações. Por fim, Eclesiastes deve ser sempre lido considerando estar “debaixo do sol” e suas afirmações não podem ser entendidas até as últimas consequências eternas.
  10. Apocalipse: Sendo provavelmente o livro mais difícil de ler das Escrituras, a ponto de que devemos desconfiar de qualquer um que pense que lidar com ele é simples bastando uma leitura linear e literalista, os autores destacam a importância de mantermos o foco na mensagem principal do livro: Cristo voltará e o mal será definitivamente vencido.

Conclusão e recomendação

Se você quiser usar um precedente bíblico para justificar uma ação atual, é mais seguro saber se o princípio da ação é ensinado em outro texto, cuja intenção primária é ensinar esse princípio. (Pg. 151)

Dos cinco livros de hermenêutica que li até o momento neste ano, considero “Entendes o que lês?” o melhor deles. Não é uma leitura tão simples quanto o Introdução à Hermenêutica Bíblica, e possui alguns pequenos problemas de tradução. Além disso, na intenção de simplificar o tema para o leitor, os autores fazem algumas afirmações que careceram de referências, como quando se referem a algumas linhas hermenêuticas. No entanto a profundidade com que o conteúdo é tratado sem se tornar acadêmico demais para o leitor comum é de grande auxílio para melhorar a sua forma de fazer teologia. Recomendo como leitura base para todos os que querem aprender a ler melhor as Escrituras e extrair delas o sentido que Deus intencionou através dos seus autores humanos.

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).