Introdução à Exegese Bíblica — Michael Gorman (Resenhas #12)

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
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7 min readSep 26, 2021
Recorte da capa da publicação

Com uma linda arte de capa, ótima edição, diagramação e com capa dura, o livro Introdução à Exegese Bíblica, publicado pela editora Thomas Nelson Brasil, é um ótimo material sobre exegese e interpretação bíblica. Contudo o livro possui um ponto negativo relevante: uma enorme bibliografia comentada com pouco valor para o leitor brasileiro.

Visão geral

Na minha visão pessoal, considero a Thomas Nelson Brasil como a editora com melhor edição, arte, diagramação e tradução dentre as editoras que publicam material cristão. O livro em questão não é diferente e a soma de bom conteúdo com bom material deixa a leitura muito agradável.

Além disso, e estrutura dos capítulos do livro é focada no leitor estudante. Ao final de cada um existe um breve resumo do que foi falado e alguns exercícios para o estudante praticar o que estudou ali. Alguns desses exercícios, inclusive, são modelos para trabalhos de um seminário / faculdade, com o propósito de ajudar o professor que esteja usando esse livro. A leitura desse livro, para que possa ser devidamente aproveitado, deve ser feita com calma e fazendo os exercícios sugeridos pelo autor, ainda que isso atrase a leitura do mesmo.

No entanto, como mencionei no início, fiquei um pouco frustrado por apenas 250 de suas 319 páginas serem de conteúdo propriamente dito. O restante, uma enorme bibliografia comentada que só tem utilidade quem tem acesso ao material publicado nos EUA e Europa. Para o leitor brasileiro, boa parte desse conteúdo é quase impossível de se obter mesmo em inglês. Com isso, boa parte do livro não contribui diretamente para o assunto e tem pouco valor para o leitor.

O conteúdo

O objetivo final da exegese é a compreensão plena ou envolvimento total — viver o texto. O objetivo final da exegese é que o indivíduo e a comunidade se tornem uma exegese viva do próprio texto. […] quando a bíblia é lida como Palavra de Deus, os leitores devem estar sempre preparados para ter seus horizontes ampliados e também criar novos horizontes. (P. 185)

A obra é dividida em três grandes partes, além de possuir alguns apêndices bastante relevantes para o estudante da Bíblia.

Parte 1: Orientação

Nessa primeira parte, com dois capítulos, o autor apresenta sua definição de exegese, os tipos de abordagem exegéticas e uma análise mais profunda de várias traduções bíblicas (para o inglês), buscando mostrar como melhor usar cada uma dentro dos propósitos em que foram pensadas.

A exegese

Segundo Gorman, “exegese pode ser definida como uma cuidadosa análise histórica, literária e teológica de um texto”. Ou seja, ela é “uma investigação, (…) o processo de fazer perguntas ao texto, questões que são muitas vezes provocadas pelo próprio texto”. Isso significa que é necessário “aprender a fazer as perguntas certas, mesmo que elas não possam ser respondidas imediatamente”. Para o autor, só poderemos entender corretamente um texto quando “procurarmos entender o ambiente particular (contexto histórico) no qual ele foi produzido e no qual está situado (contexto literário)”.

As abordagens

O autor apresenta de forma bastante honesta várias diferentes abordagens de leitura ao texto bíblico e como elas se relacionam entre si. São elas:

  • Abordagem sincrônica (histórico-gramatical): é a abordagem mais tradicional da leitura bíblica, que busca analisar especialmente a forma, narrativa, gramática e retórica do texto, dando atenção para a intenção original do autor ou, ao menos, do significado desse texto em seu contexto original. Ela não se preocupa tanto com as tradições orais anteriores ao texto, mas com o texto em sua produção final pela mão dos autores.
  • Abordagem diacrônica (histórico-crítico): diferente da sincrônica, essa abordagem se preocupa com o desenvolvimento que levou à formação do texto, assim como o desenvolvimento histórico da interpretação desse texto. Com isso ela analisa a tradição, as fontes e a redação do texto. Mesmo possuindo grande valor na análise do desenvolvimento do texto, é necessário cuidado ao utilizar esta abordagem, visto que estamos lidando com um texto inspirado e que a desconsideração da inspiração verbal pode distorcer completamente os resultados desse método.
  • Abordagem existencialista por fé/consentimento: a abordagem existencialista não é completamente independente das outras. Ela se utiliza das outras abordagens, mas vendo o texto como um meio para se chegar a um objetivo e não como um objetivo em si mesmo. Um dos exemplos de abordagem existencialista ao texto é a lectio divina, ou seja, uma exegese com propósito missional e espiritual. Portanto, a abordagem existencialista busca o sentido do texto para o leitor e vai ao texto com um objetivo além do texto. Devido a isso o autor separa essa abordagem em “fé/consentimento” e “suspeição”. No caso da abordagem por fé, o leitor assume o caráter divino do texto e busca no texto sua devoção e sua aplicação para os leitores contemporâneos.
  • Abordagem existencialista por suspeição: a abordagem existencialista por suspeição difere da abordagem por fé na forma com que vê o texto. Nesta abordagem o leitor aborda o texto a partir da crítica ideológica, vendo o texto “como um testemunho de relações de poder que podem ser prejudiciais especialmente para certos grupos”. É por essa abordagem que teologias são feitas através de lentes ideológicas ou, principalmente, o texto e a sua verdade é julgado através de outras lentes, como das ciências sociais.

As traduções

O autor realiza uma análise de várias traduções da Bíblia para o inglês. Mesmo que não se aplique diretamente às traduções que temos para o português, os princípios utilizados pelo autor para analisar e classificar as traduções podem ser facilmente usados por leitores brasileiros. Como o foco do livro é exegese, o autor classifica as traduções em:

  1. Preferenciais para exegese
  2. Úteis para exegese, com precaução
  3. Não aceitáveis como base para exegese, mas úteis para outros usos
  4. Inaceitáveis para exegese

Parte 2: Os elementos

A segunda parte é a central do livro, apresentando quais são os elementos ou etapas necessárias para uma boa exegese. O autor apresenta um material com bom embasamento teórico e bastante prático, especialmente pelos exercícios ao final da exposição de cada elemento. São eles:

  • Pesquisa: leitura cuidadosa do texto e levantamento de hipóteses sobre o significado do mesmo.
  • Análise contextual: todo o texto deve ser lido dentro do seu contexto histórico, literário e canônico (seu papel dentro do todo das escrituras).
  • Análise formal: forma, estrutura e movimentos identificados no texto. A forma pode ser vista como o tipo de escrita ou gênero e subgênero a que pertence o texto estudado. A estrutura é a forma com que o autor, dentro da forma, expressa seus argumentos, proposições ou narrativas, podendo ser identificada através da formulação de esboços do texto. Por fim, os movimentos identificados dentro do texto, ou o movimento do texto, é o relacionamento entre as diversas partes do texto, suas variações internas de forma e o papel disso na interpretação do mesmo.
  • Análise detalhada do texto: identificar o papel de cada parte do texto (palavras, segmentos, frases e conjunto de frases) dentro do todo, buscando as palavras-chave, inter-relações, intertextualidades literárias e culturais e outros.
  • Síntese: o autor dá bastante ênfase nesse elemento, visto que ele é um produto de todo o estudo mas não pode ser uma demonstração da quantidade de coisas estudadas. O papel da síntese é buscar os pontos principais do texto de forma concisa, buscando entender o que o autor quis expressar. Este é o ponto que diferencia uma boa exegese de apenas um compilado de informações. Além disso, o autor lida com as diferenças de interpretações do mesmo texto, algumas contraditórias e outras complementares, que surgem da síntese do mesmo.
  • Interpretação teológica: o autor aqui volta a abordar as diferentes formas que podemos ir ao texto. Desde praticar uma “hermenêutica da antipatia”, vendo o texto em si como perigoso, até a “hermenêutica do consentimento”, que ela é a palavra do Senhor que pode ser ouvida por nós ainda hoje, sendo essa a abordagem cristã. Segundo Gorman, “os cristãos leem a Bíblia como Escritura Sagrada porque procuram encontrar nela a mente de Cristo”. Dessa forma, a interpretação ou leitura teológica “requer uma hermenêutica da confiança que se baseia em disposições tais como humildade e receptividade, bem como as práticas dela resultantes, como a oração e a virtude cristã”. Considero esse o melhor capítulo do livro.
  • Aprimoramento e ampliação da exegese: o autor encerra os elementos da exegese com o uso de recursos complementares, como trabalhos acadêmicos, comentários, livros e artigos. Ele recomenda que esses materiais sejam consultados apenas depois que o exegeta tiver realizado o seu próprio estudo, pois o trabalho realizado é de interpretação do texto e não de levantamento de fontes.

Parte 3: Sugestões, recursos e apêndices

Ocupando quase 1/3 do livro, essa parte é bem pouco relevante para os leitores brasileiros. O autor começa com dicas sobre o uso de materiais complementares, que tipo de material procurar e como abordar esses materiais. Depois disso, como já mencionado, é apresentada uma longa bibliografia comentada de livros e comentários bíblicos de diversas tradições cristãs, sendo a maioria não publicados ou mesmo vendidos no ou para o Brasil.

Ao final da obra são incluídos quatro apêndices contendo material para consulta, resumo do conteúdo apresentado do livro e exemplos de trabalho de exegese. São de grande utilidade principalmente para alunos e professores de turmas de hermenêutica, mas para o leitor autodidata é um material de consulta eventual.

Conclusão e recomendação

Considero o livro um ótimo material para aqueles que querem entender mais sobre interpretação bíblica e exegese, mas não como primeira leitura ou leitura base sobre o tema. Caso deseje ler apenas um livro sobre exegese, não recomendo este, mas se estiver estudando o tema de forma mais profunda, o que era meu caso, a obra é excelente e uma ótima fonte de consulta, sendo o único contra a quantidade de material de pouca relevância para o leitor brasileiro.

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).