O banquete da casa em luto

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
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6 min readMay 31, 2019

Uma reflexão sobre o transcendente em Eclesiastes

Recorte de “Still-Life with a Skull - Vanitas”, Philippe de Champagne, 1671

Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, pois naquela se vê o fim de todas as pessoas; e os vivos o tomem em consideração. Melhor é a mágoa do que o riso, porque com a tristeza do rosto se melhora o coração. O coração dos sábios está na casa do luto, mas o dos insensatos, na casa da alegria. (Eclesiastes 7:2–4 NAA)

O livro de Eclesiastes é costumeiramente tratado como um livro pessimista, mal-humorado e até existencialista. Não é incomum vermos pessoas confusas com como interpretar a rigidez das suas palavras. Muito além de teóricas discussões teológicas, esse livro lida com as perguntas existenciais mais básicas do homem: “por que estou aqui?”, “qual é o propósito da existência?”, “por que a vida nem sempre é justa?”, entre outras. Implicitamente, este livro nos revela que a própria existência destas questões aponta para algo. Muito antes dos filósofos refletirem sobre a necessidade lógica e ontológica da existência de Deus, Salomão reconheceu o estranho anseio da alma humana pelo transcendente.

Uma das coisas mais presentes no livro é o alerta da morte. Todos morreremos e voltaremos ao pó, sem diferenciação entre o justo e o ímpio, entre o pobre e o rico e até mesmo entre o nós e os animais. Considerando apenas a vida sob o Sol, tudo o que fazemos e tudo o que acontece não passa de uma névoa que não conseguimos agarrar, entender sua forma ou ver através dela.

Diante disso, um questionamento deveria ser levantado: por que, em primeira instância, desejamos, agarrar alguma coisa? Por que concebemos a ideia de que as coisas possam ter um sentido e que elas deveriam ter alguma forma? Por que que, até mesmo para negá-lo, concebemos o transcendente? A resposta também nos é dada pelo mestre em Eclesiastes: Deus “pôs a eternidade no coração do homem”, contudo, de uma forma que este não pudesse “descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até o fim” (Ec 3:11b). Há, portanto, em nós, algo que nos diferencia dos animais. Porém, este algo não tem sua origem sob o Sol e aponta para além dele.

Não são poucos os pensadores cristãos que refletiram sobre o estranho anseio que temos por Deus, que nada sob o sol pode correspondê-lo adequadamente. É atribuída ao escritor Fiódor Dostoiévski o dizer de que “todo homem tem dentro de si um vazio do tamanho de Deus”. Agostinho, por sua vez, no primeiro parágrafo de suas Confissões, falando a Deus, diz: “o homem quer te louvar, este fragmento qualquer de tua criação. […] porque o fizeste rumo a ti e nosso coração é inquieto até repousar em ti[1]. Da mesma forma, C. S. Lewis diz que “ao descobrir em mim um desejo que nenhuma experiência desse mundo poderia satisfazer, a explicação mais provável é que eu tenha sido feito para outro mundo”. Ele ainda destaca que “provavelmente os prazeres terrenos nunca tivessem tido a intenção de satisfazer estes desejos, mas apenas de despertá-los para levá-lo à coisa certa[2].

É evidente, portanto, que todos nós temos desejos além do que conseguimos suprir neste mundo. Contudo, isso não nos impede de inutilmente perder muito tempo de nossas vidas tentando. É possível acabar vivendo em um autoengano tão profundo que o mais breve sinal de insatisfação é imediatamente redirecionado para alguma outra coisa, tornando nossa consciência cada vez mais cauterizada e nossa alma mais vazia. E é aqui que o choque de realidade que Eclesiastes nos traz mostra sua intenção.

Poucas coisas são tão fortes em nos fazer refletir do que a morte e o luto. São quebras no fluxo da vida e, ainda que aconteça com todos, nunca nos soa natural. Somos fragilizados a ponto de, por breves instantes, observar o estranho vazio que continua em nossa alma e questionar se ele continuará lá quando for a nossa vez de partir. “Talvez [e eu gostaria que] existisse alguma coisa além deste mundo”, somos tentados a imaginar. Como é possível imaginar algo além da realidade concebível?

Uma pergunta, na sequência, que podemos ainda ser levados a fazer durante o luto é: “se existir algo além daqui, então as ações daqui importam?”. Não farei aqui uma longa resposta apologética filosófica. Trago a resposta do mestre em Eclesiastes: sim, “Deus te pedirá contas de todas as coisas” (Ec 11:9).

Em O Peregrino, John Bunyan registra vários diálogos entre Cristão e um dos seus parceiros de viagem: Esperançoso. Em um deles, Cristão pergunta para Esperançoso o que o fazia lembrar de seus pecados. Ele respondeu:

[…] se eu encontrasse um bom homem nas ruas; ou se eu ouvisse alguém lendo a Bíblia; ou se a minha cabeça começasse a doer; ou se ficasse sabendo que algum vizinho meu estava doente; ou se eu ouvisse os sinos tocarem pelos mortos; ou se eu mesmo pensasse na morte; ou se ficasse sabendo que alguém morrera de morte súbita. Mas especialmente quando eu pensava em que logo chegaria a hora do meu julgamento.[3]

Lewis disse que “o sofrimento é o megafone de Deus”. Creio, então, que o luto soe mais alto que um concerto de heavy metal em um estádio lotado. É o grande alerta, a nota dissonante da realidade que expõe que há uma melodia ao fundo. Agostinho, sobre a perda de um amigo, escreve:

De fato, para onde quer que se vire a alma do homem, fixa-se em dores se não for em ti, ainda que, fora de ti e de si, se fixe em coisas belas, que, no entanto, não seriam nada se não fossem por ti. Elas nascem e morrem e nascendo é como se começassem a ser, e crescem, até ficar completas, e, já completas, envelhecem e perecem […]. Portanto, quando nascem e tendem a ser, quanto mais rapidamente crescem para ser, tanto mais se apressam para não ser.[4]

O autor de Eclesiastes conclui o seu livro apresentando como resumo de tudo o que foi dito adorar e temer a Deus, obedecendo seus mandamentos, tendo isso como dever máximo e reconhecendo a autoridade de Deus. Da mesma forma, Agostinho louva a Deus pela efemeridade das coisas e o propósito de serem assim, diante da autoridade do Senhor:

Que minha alma te louve por essas coisas, Senhor criador de tudo, mas não se fixe nelas pela visgo do amor, através dos sentidos corporais. Com efeito, elas se vão porque já vinham para não ser. […] não há como repousar nelas, porque não permanecem: fogem, e quem poderia acompanhá-las com os sentidos da carne? Ou quem poderia agarrá-las, mesmo quando estão à mão? Porque os sentidos da carne são lentos, por serem sentidos da carne: esse é o limite deles. […] não são adequados […] para segurar o que transcorre de um início devido até o devido fim. No teu Verbo, pelo qual são criados, ali ouvem: “Daqui, até aqui”.[5]

Por fim, o Verbo a quem Agostinho se refere é a resposta aos nossos desejos. O mesmo que define o início e fim de todas as coisas é aquele que nos restaura o relacionamento com o Pai. O mesmo juiz é também o justificador, perdoador das nossas dívidas e nos traz esperança e propósito para a vida. Ele nos mostra que a vida vem de muito acima do Sol. Sobre si mesmo, Ele disse ser o caminho, a verdade e a vida (Jo 14:6) e provou isso vencendo a morte e nos carregando até o Pai. Ele nos chama para vir a Ele, pois nEle, nosso fardo é esvaziado (Mt 11:28–30) e nosso espírito recebe vida. Todos os que sinceramente confessarem o nome de Cristo arrependidos de suas falhas, encontrarão graciosa salvação (Rm 10:9), mediante apenas a fé (Ef 2:8).

Que o amargo da casa do luto lhe seja um sinal para um banquete de vida.

[1] AGOSTINHO, Confissões (Livro I.I,1), p. 37, Editora Schwarcz.

[2] LEWIS, C. S, Cristianismo Puro e Simples, p. 183, Thomas Nelson Brasil.

[3] BUNYAN, J., O Peregrino, lc. 164, Editora Mundo Cristão.

[4] AGOSTINHO, Confissões (Livro IV.X,15), p. 106–107, Editora Schwarcz.

[5] Ibid., p. 107.

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).