O cristão, as redes sociais e as paixões políticas

O indivíduo e a comunidade cristã na exaltação dos ânimos políticos

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
6 min readJul 30, 2020

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Aquele que se entrega sem reservas às reivindicações temporais de uma nação, ou de um partido, ou de uma classe, estará entregando a César aquilo que, acima de tudo, pertence de forma mais enfática possível a Deus; estará entregando a sua própria pessoa. (C. S. Lewis)

Nos últimos anos, os acontecimentos políticos nacionais e mundiais aumentaram as rachaduras sociais, confrontaram cosmovisões e inflamaram os ânimos de muitos. Não foi diferente na igreja cristã. Infelizmente, muitos passaram a ter paixões políticas como centro de suas vidas, acima do serviço a Cristo e Seu corpo. Passaram a prostrar-se diante dos agentes políticos e ideias, seja por amor, seja por ódio. Chegamos a níveis blasfemos de idolatria — onde todos aqueles que se opõem a determinada ideia são vistos pelos seus defensores como o problema do mal, autores do pecado e que opor-se a determinada ideia assemelha-se a um pecado moral. Certamente algumas ideias políticas são em si mesmas pecados morais do ponto de vista cristão e devem ser condenadas publicamente, porém o referencial de pecado não está na ideia política oposta, mas no valor absoluto fornecido pelo cristianismo.

Diante desses problemas, creio que alguns princípios precisam ser seriamente considerados, tanto pelos indivíduos quanto pela comunidade local para que não escondamos nossos pecados sob pretextos aparentemente positivos.

Cosmovisão bíblica

Muito se fala hoje sobre cosmovisão e a necessidade de termos uma visão de mundo bíblica aplicando os princípios dados por Deus em todas as esferas da sociedade. James Sire, no livro “Dando nome ao elefante”, define cosmovisão como primariamente “um compromisso, uma orientação fundamental do coração”. Ele traz tal definição como uma resposta crítica aos que definem cosmovisão apenas como um conjunto de pressupostos ou como um modelo pelo qual a realidade é vista.

Agostinho, ao dizer “cada um é tal qual seu afeto”, defendeu que somos moldados por aquilo que colocamos em primeiro lugar em nossas vidas, por aquilo que orienta fundamentalmente o nosso coração, com o qual ele se compromete.

Diante disso, todos os cristãos que desejarem buscar e apresentar entendimentos bíblicos sobre a política, defendendo a visão cristã como a única viável na realidade criada por Deus, devem ter seu coração antes comprometido com o próprio Deus.

No momento em que paixões e ódios políticos tornarem-se instintivos, como o centro da crítica, pensamento e dos afetos, moldando até mesmo os relacionamentos, Deus foi retirado da centralidade da cosmovisão. “Aquele que está de pé veja que não caia” (1 Co 10:12), disse Paulo. Em um mundo caótico como o nosso, até mesmo aqueles profundamente conhecedores da teologia e de seus impactos na sociedade podem ceder à tentação da paixão política. Não esqueçamos o que Calvino afirmou: “o coração é uma fábrica de ídolos”.

Sabedoria e as paixões deste mundo

Foge também das paixões da mocidade; e segue a justiça, a fé, o amor, e a paz com os que, com um coração puro, invocam o Senhor. (2 Timóteo 2:22)

O texto citado acima é usado frequentemente para apaziguar jovens apaixonados. No entanto, Paulo está aconselhando Timóteo com relação às discussões com aqueles que traziam falsos evangelhos. Ele o aconselha a evitar “falatórios profanos” (v. 16) e que “ao servo do Senhor não convém contender, mas sim ser manso para com todos” (v. 24). Timóteo devia instruir “com mansidão os que resistem” e confiar em Deus para dar o arrependimento.

Certamente Paulo não estava chamando Timóteo a ser omisso, visto que ele o exorta à coragem em vários momentos e a não temer diante daqueles que desejam desviar a fé. O que Paulo estava aconselhando Timóteo era justamente evitar contendas desnecessárias e sempre agir com humildade. Não devia deixar o seu jovem espírito cheio de energia levar-se pela paixão da contenda. Além disso, é necessário considerar que Timóteo era um presbítero ordenado, responsável por pastorear uma igreja local, ou seja, incumbido de autoridade eclesiástica. Se para ele tal conselho valia, quanto mais para nós?

Tiago, em sua epístola, nos afirma que Deus nunca rejeita a oração por sabedoria pedida com fé (Tg 1:5). Isso é ainda mais confirmado quando refletimos que nossas orações são respostas à revelação divina. Através das Escrituras podemos manter um diálogo com o próprio Deus que, em sua revelação, se preocupou em nos deixar livros exclusivamente de sabedoria, para que pudéssemos recorrer nos momentos de coração inflamado.

São vários os conselhos sobre o falar sábio contra o falar imprudente que podemos encontrar no livro de Provérbios. Somos lembrados que o silêncio é, em grande parte das vezes, preferível e que devemos pensar antes de falar. Debates devem ser feitos apenas quando necessário; provocações provêm de corações pecaminosos que não temem ao Senhor. Todo aquele que nota seu coração constantemente inflamado por discussões em redes sociais que, em grande maioria se qualificam como irrelevantes, deveria buscar períodos de silêncio e meditação nos livros de sabedoria bíblicos antes de voltar a expressar-se. É muito entristecedor observar que cristãos de diversas tradições teológicas e com diferentes vocações parecem não considerar os livros de sabedoria como canônicos ao utilizar as redes sociais.

Disciplina Eclesiástica

Não entres em questões loucas, genealogias e contendas, e nos debates acerca da lei; porque são coisas inúteis e vãs. Ao homem herege, depois de uma e outra admoestação, evita-o, sabendo que esse tal está pervertido, e peca, estando já em si mesmo condenado. (Tito 3:9–11)

O texto citado acima se refere a Paulo instruindo Tito sobre como lidar com gnósticos e judaizantes que traziam debates inúteis à igreja e, mesmo depois de corrigidos, insistiam no erro. Todo aquele que insiste em um Evangelho diferente do que foi pregado já está condenado e deve ser afastado da comunhão dos santos. Da mesma forma, como vemos em várias outras passagens sobre disciplina na igreja, todo aquele que insiste no pecado sem arrependimento não está demonstrando o principal fruto da salvação e não deve mais ser reconhecido como um membro da comunidade de fé até que se arrependa.

Todavia, a igreja moderna passou a considerar apenas alguns pecados como dignos de disciplina e, com isso, a aceitar alguns desvios do Evangelho como forma de evitar conflitos e para “não perder a pessoa”. Temos em alta conta os pecados sexuais e heresias graves, mas não nos importamos com orgulho, gula, contendas e outros. Ao escolhermos os pecados realmente necessários de arrependimento nos desfazemos das Escrituras e reduzimos o sacrifício de Cristo.

O que a igreja local deveria fazer diante de membros que se recusam a arrepender-se e insistem em expressar suas paixões e ódios políticos de forma não sábia? Aqueles que tiram Cristo do centro de sua cosmovisão criam um “outro evangelho” e pregam ele com suas vidas e palavras na comunidade local. Quando um membro recusa a arrepender-se das provocações online realizadas, atrapalha suas relações familiares com discussões políticas e motiva suas ações online apenas sob paixões e ódios políticos, a igreja não tem o direito de se omitir.

Quando a igreja local e seus líderes optam por ignorar a necessidade da disciplina em seus membros que estão pecando abertamente nas redes sociais e criando um outro evangelho visto a partir de alguma ótica política, ela está negando o amor cristão aos seus membros e assumindo uma posição de indiferença quanto aos falsos evangelhos gerados a partir de visões de mundo pregadas por quem se diz cristão sem efetivamente ter Cristo no centro.

Conclusão

O propósito deste texto foi de forma curta e sem longas discussões teológicas apresentar alguns alertas para aqueles dominados por paixões e ódios políticos e apontar a necessidade da ação da igreja como comunidade junto aos que estão lutando contra esses pecados. Não existe verdadeira comunhão e pastoreio na seletividade de pecados disciplináveis.

Tudo o que falo, assim o faço com temor diante da minha inexperiência. Contudo creio ser necessário expor a tristeza causada pela falta de sabedoria dos cristãos na internet. Que Deus nos abençoe com Sua sabedoria e nos ajude a ordenar nossos afetos em um mundo mau. Deixo, por fim, alguns pontos de reflexão.

1. Se você sente que seu coração é facilmente dominado por paixões e ódios políticos, arrependa-se diante de Deus e aproxime-se de líderes e pessoas sábias para lhe ajudarem a dominar a si mesmo e aprender mais sobre como sabiamente influenciar a sociedade pela visão de mundo cristã.

2. Examine a si mesmo regularmente quanto às inclinações do coração e busque ter períodos regulares de silêncio.

3. Peça perdão para aqueles que ofendeu ou mesmo que tentou provocar sem sucesso. Se forem pessoas próximas, apenas volte a falar sobre política e assuntos controversos quando colocá-las em seu coração acima dessas ideias.

Se você exerce função pastoral, busque ajudar seus pastoreados para uma vida de discipulado e busca de santidade a partir de uma visão bíblica de mundo em todas as áreas. Não fuja dos conflitos privados da disciplina e públicos do posicionamento social, mas em tudo tenha sabedoria sem omissão.

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).