O cristão e a filosofia: um testemunho pessoal (Filosofia #1)
Era verão de 2007 ou 2008 e eu estava na casa da minha avó paterna passando um final de semana lá. Estava na minha pré-adolescência, mas desde muito cedo eu já tinha curiosidade sobre os grandes questionamentos da vida. O significado e as motivações das coisas sempre me importaram, especialmente por eu ser alguém que foi criado dentro da igreja. No final da tarde eu estava com ela em frente à casa e um vizinho passou ali e começou a conversar conosco. Por algum motivo entramos em um assunto envolvendo o significado da vida e a importância de se pensar em Deus. O vizinho, um não cristão, começou a defender veementemente que não havia importância de estudar ou refletir sobre coisas que não tivessem aplicações práticas imediatas e que a função da religião era apenas prática. Para ele, todo o resto era uma discussão vazia e sem sentido. Religião servia para fins práticos de convivência. Não lembro dos detalhes da conversa, mas lembro da forma com que ele se exaltou ao defender esse ponto.
Alguns anos depois, vi uma mulher da nossa igreja decidir estudar teologia. Ouvi pessoas darem muitos alertas a ela (e algumas até se opuseram aos seus estudos): “teologia esfria o crente”. Tudo poderia se encaixar no que era chamado de “vã filosofia”, em uma apropriação indevida do linguajar paulino. Nessa mesma época, vi um amigo meu, antes crente, passar a rejeitar e se opor à fé cristã. Em algumas conversas, percebi que ele rejeitava algo que nem era a fé cristã real: mesmo tendo vivido tantos anos na igreja, ele nunca tinha refletido de verdade sobre o significado daquilo que ouvia. Ele passou anos dentro da igreja, mas apenas conhecia os padrões de comportamento daquela comunidade específica. Continuava um absoluto ignorante no conteúdo e implicações reais da fé ou da descrença.
Conforme eu estudava teologia, fui aprendendo que o entendimento real sobre as coisas espirituais são mediante ação do Espírito Santo, pois o nosso entendimento resiste à Deus. Não se trata de um defeito ontológico, mas moral. Isso, no entanto, não respondia a todas as minhas inquietações. Encontrei na faculdade e no trabalho colegas que se diziam ateus e militavam pela causa. Nas primeiras conversas que tive com eles, eu esperava encontrar bons argumentos e respostas para as mesmas questões existenciais que o Cristianismo responde. Esperava que, de alguma forma, seus argumentos explicassem de forma desafiadora o porquê de eles não encontrarem no Cristianismo respostas satisfatórias. Descobri, contudo, que o ateísmo deles era mais arbitrário e dogmático do que minha própria fé. Perguntas filosóficas simples vindas de um leigo como eu eram suficientes para confundí-los. A própria existência das questões era nova para eles, ou seja, não havia reflexão real.
Não se tratava, portanto, apenas de pessoas que, ao refletir, não conseguiam chegar na fé cristã pelo pecado no coração, mas sim de uma cultura inteira que se negava ao ato da reflexão em si. Achando estarem em águas profundas, mal tinham molhado os tornozelos. E não falo como se eu fosse alguém que entendesse filosofia. Era — e ainda sou — um leigo. Mas como era possível viver e, inclusive, defender afirmações seríssimas sem nunca ter feito perguntas tão básicas?
A Bíblia é cheia de convites para examinarmos dentro de nós mesmos as nossas ações e motivações. Além disso, todo o enredo da salvação não se trata de uma sequência de passos práticos para se obter algum benefício ou fugir de alguma tragédia, mas sim de respostas para os grandes questionamentos e necessidades da humanidade. Como cristãos, precisamos assumir que precisamos de Jesus nos níveis mais profundos da nossa existência. Como poderíamos fazer isso sem refletirmos sobre nossas necessidades, motivações e vontades?
Encontrei na igreja níveis de reflexão filosófica, mesmo em pessoas simples e incultas, mais profundos do que em alguns acadêmicos. Certamente não na mesma precisão de discurso, mas uma identificação pessoal com as questões da filosofia maior do que de muitos que as abordam de forma puramente técnica. Por outro lado, encontrei influências terríveis da ansiedade pela “aplicação prática imediata”. Desde hermenêuticas apressadas em aplicar o texto antes de entendê-lo, dicotomias entre a vida fora e dentro da igreja, até decisões ministeriais puramente pragmáticas, sem reflexões sociais, filosóficas e teológicas.
As grandes perguntas
Qual o fundamento da realidade? Deus existe? Qual a relação entre a fé e a razão? Como é possível saber qualquer coisa? Será que crer em Deus é racionalmente justificável? Qual o papel da mediação dos sentidos com o nosso contato com a realidade?
Podemos ainda acrescentar perguntas sobre a coerência interna da nossa fé. Não seria a crença na sobrenaturalidade algo irracional? Como Deus pode ter sua identidade definida como uma Trindade? Como Cristo poderia ter duas naturezas se, sendo Deus, seria imutável? Qual o papel da experiência interna no testemunho externo da fé? Não seria o problema do mal (teodicéia) um anulador da racionalidade da crença cristã? Por que existe uma pluralidade tão grande de crenças? Como a fé cristã deveria ser considerada no espaço público? É correto o Cristianismo se afirmar como verdade absoluta?
Essas são apenas algumas das tantas perguntas possíveis que podemos fazer e que exigem reflexões sérias e profundas, tanto teológicas quanto filosóficas. Inclusive sobre o limite e a relação entre essas duas áreas do conhecimento. R. C. Sproul diz (inspirado em Sócrates) que “para qualquer pensador sério, especialmente o que diz ser cristão, uma vida não avaliada não é uma opção válida” (Filosofia para iniciantes, p. 13).
A relação entre filosofia e cristianismo é longa e turbulenta. Ambas se influenciam mutuamente. É da filosofia, com todo o seu impacto cultural, de onde vem os desafios mais sérios à fé cristã. É por ela que as pessoas são apresentadas aos argumentos contra o cristianismo na sua forma mais convincente. Por isso é necessário que estejamos preparados. Por outro lado, a filosofia beneficia a sociedade e a teologia com a busca pela precisão de argumentações e a busca pela capacidade de formular pensamentos claros e coerentes. Isso influencia pregação, ministério e vários outros aspectos da vida cristã.
Por esses e outros motivos, iniciei uma pós-graduação em Teologia Filosófica no Seminário Teológico Jonathan Edwards e pretendo usar este blog como registro dos meus estudos Muitas vezes o ato de refletir e escrever se torna parte da fixação do próprio aprendizado. O objetivo é apresentar alguns conceitos de forma simples e resumida de um ponto de vista de um estudante, não de um expert. A escolha de expor esses textos publicamente em formato de pequenos ensaios vem da possibilidade de eles ajudarem e incentivarem amigos próximos no estudo da área, além de ser uma forma de “estudar em comunidade” e reforçar meu próprio aprendizado. Todos esses textos serão dedicados a esses amigos.
Que Deus guie e dê sabedoria a todos nós que desejamos entender mais a realidade que Ele criou sem perder a perspectiva da revelação divina, seja nas Escrituras, seja na criação.