Salmo 1.1: diga-me com quem andas

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
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11 min readMar 5, 2019

O caminho do justo em contraste com o caminho até a roda dos escarnecedores

Recorte da pintura “Christ Carrying the Cross”, de Hieronymus Bosch, 1510.

Bem-aventurado o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores.

Salmos 1:1

O Salmo 1 abre o livro dos Salmos. Sua chamada à sabedoria faz com que ele funcione como a abertura para o livro todo. A busca pela sabedoria que vem de Deus e o afastamento das coisas que Ele detesta parece ser a temática principal do salmo. Ele expressa um contraste entre o ímpio e o justo, fazendo-nos lembrar do contraste entre o primeiro Adão e Cristo, o segundo Adão. Sua autoria é desconhecida, assim como sua datação. Existem evidências textuais que apontam para uma datação anterior a Davi, porém é impossível afirmar com certeza, visto que vários pais da igreja consideram este salmo unido com o segundo, cuja autoria é atribuída a Davi (At. 4:25). Estudaremos mais sobre isso no comentário de Salmo 2.

Calvino resume o salmo dizendo que “a suma e a substância de todo o Salmo consistem em que são bem-aventurados os que aplicam seus corações a buscar a sabedoria celestial; ao passo que, os profanos desprezadores de Deus, ainda que por algum tempo se julguem felizes, por fim terão o mais miserável fim”. Ainda que este resumo esteja, ao meu ver, suficientemente correto, vários outros temas e aplicações podem ser retiradas deste salmo que não estão incluídas no resumo de Calvino. Antes de começar uma análise dos textos, que farei por trechos, listo abaixo temas que, apenas com uma rápida leitura, é possível identificar presentes no texto:

· Princípios para hombridade bíblica;

· Amizades, influências e companhias;

· Suficiência em Deus e Sua Palavra;

· Verdadeira prosperidade;

· Contraste entre o ímpio e o justo;

· Esperança escatológica (juízo final).

Falarei sobre estes temas conforme eles forem se apresentando no texto. Até lá, deixo para o leitor a descoberta da aplicação do salmo nos temas citados. Sugiro para o comentário deste e dos próximos salmos que o leitor medite no salmo antes de iniciar a leitura do comentário. O poder de corte da espada do Espírito está na Palavra revelada. Os comentários buscam apenas auxiliar o leitor em sua interpretação.

“Bem-aventurado”

O termo que foi traduzido como “bem-aventurado” é uma referência a um tipo de bênção e felicidade (expressada no plural) que apenas poderia ser advinda de Deus. Então a referência não é a apenas um tipo de bem-aventurança material, mas de bênçãos que poderiam ser apenas provenientes de Deus, um tipo de felicidade e prazer inigualável.

Calvino relaciona tal bem-aventurança como uma forma de trazer esperança ao justo, devido ao enorme número de pessoas que zombam de seu caminho. Ao dar um fim escatológico para os justos e pecadores, ela traz a esperança de que a justiça de Deus seria aplicada. Fazendo assim, o salmista “os admoesta a se precaverem para não se deixar levar pela impiedade da multidão que os cerca”. O fato de as condicionais da bem-aventurança antecederem o versículo que fala da meditação na lei do Senhor (v2), mostra que “impossível é para alguém aplicar a sua mente à meditação na lei de Deus, se antes não recuar e afastar-se da sociedade dos ímpios”. Ao afirmar isso, Calvino fala que o salmo afirma que “para que vivamos plenamente conscientes dos perigos que nos cercam, necessário se faz recordar que o mundo está saturado de corrupção mortífera”.

Certamente o texto aqui não está falando de uma ruptura radical com a sociedade, como se não houvesse graça comum, como uma ação do Espírito Santo em manter até mesmo os descrentes contidos em sua maldade. A ideia de ruptura foi muito pregada pelos participantes da Reforma Radical[1] e falha em considerar que a maldade tem origem no coração humano e não na sociedade em si. Portanto, onde houverem homens pecadores (e todos o são), ali haverá “corrupção mortífera”. Devemos buscar o distanciamento especialmente quando se torna impossível conviver, conversar e ter algum nível de comunhão de maneira que isso não desagrade a Deus.

“O homem”

Algumas versões traduzem esta palavra para “aquele”, com propósito de contextualizar trazendo uma palavra mais genérica e não referente a gênero, visto que bem-aventurança se aplica, obviamente, a todos, homens e mulheres. Outras traduções, no entanto, utilizam palavras diretamente masculinas, como “varão”.

Ainda que se tenha consciência de que a aplicabilidade do que é dito aqui seja a todas as pessoas, é possível retirar uma das características da verdadeira masculinidade de um homem temente a Deus. Faz parte da hombridade esperada de um homem temente a Deus que ele tenha discernimento sobre os conselhos que ouve, não seguindo os conselhos daqueles que não o levam a sã doutrina. Faz parte também que ele, ainda que cometa pecados, não se mantenha no caminho dos pecadores. Que ele tenha o Espírito Santo lhe concedendo o arrependimento e constantemente desejando voltar-se a Deus a cada queda. Que ele saiba também escolher seus amigos e com quem ele tem comunhão. Considerando estas características (que logo falarei mais delas), o verdadeiro homem conforme a Palavra de Deus é alguém que constantemente busca a sabedoria divina aplicando-a em seus relacionamentos e decisões.

E, se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente, e o não lança em rosto, e ser-lhe-á dada.

Tiago 1:5

Temos aqui uma aplicação muito clara: precisamos buscar sabedoria em Deus, pedindo a Ele com a certeza de que Ele não nos virará o rosto. Sabedoria esta que nos auxiliará a sermos homens tementes a Deus e a, consequentemente, alcançarmos o real significado de uma masculinidade bíblica e sadia. Novamente, tudo converge para Deus, de tal maneira que começamos a compreender que, por meio dEle, encontramos um prazer enorme que só pode ser encontrado nEle. Tal prazer pode ser atingido quando cumprimos o que foi dito no versículo. E para cumprirmos isso, precisamos de uma sabedoria que só pode ser providenciada por Ele. Não seria este o conceito de Graça sobre Graça?

Mas, afinal, por que uma aplicação especial para os homens nestes princípios? Tais recomendações, como já disse anteriormente, valem para todos. Entretanto, decidi destacar aqui a masculinidade pelo papel que é atribuído ao homem desde a criação do mundo: liderança sobre a família, tendo inclusive a responsabilidade de pastoreá-la. Tal posição de liderança coloca o homem com o dever de exemplo, e o expõe a consequências de suas falhas que podem prejudicar muito mais pessoas que a si mesmo. Devido a tal papel que a masculinidade bíblica possui é que muitos dos salmos se referem a bênçãos e maldições sobre toda a uma casa, família e negócios de um homem, caso ele siga ou não as ordenanças de Deus.

“não anda segundo o conselho dos ímpios”

Esta é a primeira das três partes de uma progressão realizada pelo salmista. Inicialmente o conselho se refere a “andar” ou “seguir”, depois passa a se referir a “ficar”, “manter” ou “deter” e, por fim, “assentar”. Com isso, o salmista cria uma progressão de atitudes que não devem ser feitas, começando com uma casual associação com os ímpios até uma completa identificação com eles. Esta multiplicidade de expressões para definir a comunhão com os ímpios se dá pela impossibilidade de nos distanciarmos fisicamente deles e, portanto, precisava ser mais detalhadamente definida.

Andar conforme o conselho dos ímpios significa permitir que as ideias e conselhos das pessoas que não servem a Deus, estando em modo de rebeldia contra Ele, influenciem o seu comportamento. Significa seguir os maus conselhos dos ímpios.

Ainda que possam existir vários casos onde Deus use ímpios e incrédulos para falar com os Seus filhos, Ele assim o faz sobrepujando, de certa forma, a rebeldia existente nos ímpios, mesmo que eles desejem fazer qualquer coisa exceto servir conforme o propósito divino. Para um cristão, muito mais sábio é buscar aconselhamento e ser guiado por cristãos mais maduros. Se pessoas nascidas apenas da carne não podem entender as coisas espirituais, como que alguém nascido do espírito voltaria a seguir os conselhos delas, que não compreendem o que é uma vida nascida do espírito? A sabedoria para a tomada de decisões deve ser buscada primeiramente na Palavra de Deus (Sl 119; 2 Tm 3:16), por meio de súplicas e orações, em seguida devemos ouvir irmãos experientes em sua caminhada com Cristo. Um resultado natural dessas práticas é um afastamento dos maus conselhos e conselheiros, deixando, assim, de seguir o que os incrédulos dizem, pois eles estão em estado de rebeldia contra Deus e certamente não desejam nos conduzir para perto dEle.

Sobre o conselho dos ímpios, Calvino em seus comentários entra na questão de que os ímpios encontram satisfação em seus próprios caminhos, justamente por seus corações assim desejarem e, por isso, o justo não deve seguir os seus conselhos.

(…) todos aqueles que se afastam ao máximo da justiça, procurando satisfazer suas imundas concupiscências, se julgam felizes em virtude de alcançarem os desejos do seu coração. (Calvino)

“nem se detém no caminho dos pecadores”

Esta segunda característica é ainda mais profunda que a anterior e bem mais séria. Não se refere mais apenas a não ouvir o conselho dos ímpios, mas a não se deter no caminho dos pecadores. O texto não está afirmando que o homem justo nunca irá pecar, mas que ele não irá se deter no caminho dos pecadores, ou seja, não irá se manter em pecado.

O texto faz uma clara distinção entre o caminho dos justos e o caminho dos pecadores, o que me traz em memória as palavras de Jesus, ao dizer:

Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; E porque estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem. (Mateus 7:13,14)

O justo não se detém no caminho largo, pois este conduz a perdição e são muitos os que seguem este caminho. Sabendo que o caminho estreito leva a vida, voltamos a afirmação inicial do salmo, que diz “Bem-aventurado o homem”.

Diante desta diferenciação entre o caminho do justo e o do pecador, faz-se necessário trabalharmos um pouco a palavra justo. O próprio livro de salmos nos diz que “todos se extraviaram e juntamente se corromperam; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Sl. 14:3). Citando esta passagem, Paulo afirma que “não há justo, nem um sequer” (Rm. 3:10b). Como um salmo que traz bem-aventuranças para os justos pode ser aplicado a nós, visto que não há ninguém no mundo que se encaixe nesta definição? Lutero, pouco mais de 500 anos atrás, passou por um dilema semelhante, ao se deparar com a passagem de Romanos 1:16–17, que diz o seguinte:

Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego; visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá pela fé.

Sobre este texto, Lutero diz:

Eu odiava de Rm 1:17 a expressão ‘justiça de Deus’, pois aprendi a entendê-la filosoficamente como a justiça segundo a qual Deus é justo e castiga os pecadores injustos. Eu não amava o Deus justo, que pune os pecadores; ao contrário, eu o odiava. Mesmo quando monge, eu vivia de forma irrepreensível, perante Deus eu me sentia pecador e minha consciência me torturava muito. Eu andava furioso e de consciência confusa. Não obstante, teimava impertinentemente em bater à porta desta passagem; desejava com ardor saber o que Paulo queria dizer com ela […]. Dia e noite eu andava meditativo, até que, por fim, observei a relação entre as palavras: ‘A justiça de Deus é nele revelada, como está escrito: O justo vive por fé.’ Então me senti como renascido, e entrei pelos portões abertos do próprio paraíso. Aí toda a Escritura me mostrou uma face completamente diferente.[2]

A justiça de Deus revelada no evangelho, que nos torna justos e faz com que possamos entender as referências ao justo no salmo aplicadas a nós e as oposições ao ímpio, é a justiça do próprio Cristo. Ele, em sua obra na cruz, carregou os nossos pecados e nos deu a Sua justiça e é por esta justiça que podemos hoje saber que Deus nos vê como justos, pois ao nos ver, vê a imagem de Seu filho.

“nem se assenta na roda dos escarnecedores.”

Este é o último e mais profundo dos conselhos que um homem justo deve se atentar. Ao assentar-se com eles, o homem torna-se um deles, não havendo mais distinção entre eles. É o estágio máximo de comunhão com os ímpios. Qualquer pessoa neste estágio não é capaz, por si, de desejar sair do seu próprio caminho mau e de se arrepender.

Nas escrituras encontramos um detalhamento maior da motivação do porquê não devemos ter comunhão com os ímpios, através das palavras de Salomão.

Filho meu, se os pecadores procuram te atrair com agrados, não aceites. (Provérbios 1:10)

Filho meu, não te ponhas a caminho com eles; desvia o teu pé das suas veredas; (Provérbios 1:15)

Não entres pela vereda dos ímpios, nem andes no caminho dos maus. Evita-o; não passes por ele; desvia-te dele e passa de largo. Pois não dormem, se não fizerem mal, e foge deles o sono se não fizerem alguém tropeçar. Porque comem o pão da impiedade, e bebem o vinho da violência. Mas a vereda dos justos é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito. O caminho dos ímpios é como a escuridão; nem sabem em que tropeçam. (Provérbios 4:14–19)

O conselho deste último trecho não é de apenas desviar o caminho, mas passar longe. É comum os cristãos observarem de perto o caminho dos ímpios desejando desfrutar das coisas que eles têm e, várias vezes, pensam que “experimentar um pouquinho” não seria problema. A Palavra, porém, diz para passarmos o mais longe possível dos caminhos errados e evitá-los ao máximo. Ademais a Palavra nos dá motivos claros para evitarmos o caminho. O coração daqueles que são rebeldes contra Deus deseja a maldade e, por estarem na escuridão, nem sabem mais onde tropeçam e por que suas obras são erradas. Ao conhecer a Bíblia, descobrimos que todo o coração humano encontra-se exatamente nas condições descritas até que Cristo venha e o transforme[3]. Devemos ser gratos por, ao ler a Bíblia, nos arrependermos dos pecados e reconhecermos as nossas falhas, pois até isso é obra divina em nossas vidas.

Para os que já se assentaram

Se você chegou até aqui neste texto e reconheceu estar progredindo em direção à roda dos escarnecedores ou até mesmo já está lá, junto com todos, sem nenhuma distinção, absolutamente rebelde contra Deus, leia o restante do Salmo. Veja o que Deus preparou para o justo e o ímpio. Lembre-se que mencionei anteriormente que Jesus Cristo oferece a justiça que o torna justo. Aproxime-se de pessoas que buscam por Cristo e afaste-se do caminho que leva a morte.

Oro aqui para que Cristo rompa a rebeldia do teu coração e lhe traga para o caminho correto, através do novo nascimento, fé e arrependimento. Não hesite em seguir o conselho deste salmo. Em Cristo, toda a sabedoria divina é encarnada. Ele certamente é muito mais confiável que teu próprio coração.

Notas

[1] Para saber mais sobre a reforma radical, recomendo o Podcast BtCast 038, disponível em http://bibotalk.com/podcast/btcast-038-reforma-radical/.

[2] Citações retiradas de http://reformai.com/lutero-e-justica-de-deus/, acessado em 12/01/2019.

[3] Para saber mais sobre isso, recomendo pesquisa sobre a doutrina da Depravação Total em alguma Teologia Sistemática reformada.

Referências

Archer, G. L. (1994). A survey of Old Testament Introduction. Chicago: The Moody Bible Institute.

Bíblia de Estudo Cronológica Aplicação Pessoal. (2015). Rio de Janeiro: CPAD.

Bíblia de Genebra Revista e Ampliada. (2009). São Paulo: Cultura Cristã.

Bruce K. Waltke, J. M. (2015). Os Salmos como Adoração Cristã. São Paulo : Shedd.

Calvino, J. (2013). Comentário de Salmos (Vol. 1). São Paulo: Editora Fiel.

Pib Barueri. (s.d.). Salmo 1. Acesso em 12 de janeiro de 2019, disponível em Pib Barueri: http://www.pibbarueri.org.br/arquivos/Salmo_1.pdf

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).