Salmo 2.1–3: a conspiração dos rebeldes
Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o SENHOR e contra o seu Ungido, dizendo: Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas. (vv. 1–3)
O Salmo 2, junto com seu antecessor, formam uma espécie de prefácio ao livro de Salmos. Sua linguagem é diferente dos salmos seguintes. Enquanto o primeiro destaca a supremacia da Palavra de Deus, o segundo destaca a supremacia de Deus e seu Ungido. Alguns autores, dentre eles vários pais da igreja, afirmam que os dois primeiros salmos são, na verdade, um só originalmente e que sua divisão ocorreu na Septuaginta, o que justificaria a citação de Paulo ao “salmo segundo”, em Atos 13:33, visto que ele se referia a gentios.
A autoria do salmo não é clara no texto, entretanto, Pedro (At 4:25) atribui a autoria a Davi inspirado pelo Espírito Santo, mostrando que o Ungido que o Salmo se refere é Cristo. Caso consideremos este salmo como um só com o seu antecessor, isso faria com que Salmo 1 também fosse de autoria Davídica. Este salmo é considerado messiânico, pois possui uma dupla referência entre Davi e Cristo.
Não é explícito no texto o propósito com que ele foi escrito, contudo, conforme veremos durante o estudo, existem algumas evidências de que foi escrito para a ocasião da coroação de Davi.
Dentre muitos textos do Antigo Testamento que são citados no Novo, o Salmo 2 é o que mais aparece. É citado por Mateus, Lucas, Pedro, Paulo e o autor de Hebreus. Tais referências destacam sua característica Messiânica, pois mostra que os próprios judeus já o consideravam messiânico e aguardavam um Messias conforme descrito no Salmo. Ou seja, as duplas referências a Davi e ao Messias não eram surpresas aos leitores judeus.
Em geral, este salmo é dividido em 4 partes. Leandro Peixoto as intitula da seguinte maneira, que será utilizada como base para subdividir também este comentário[1]:
1. A rebeldia do ímpio (vv. 1–3);
2. A resposta de Deus (vv. 4–6);
3. O reinado do Filho (vv. 7–9);
4. Recomendações de Deus ao ímpio (vv. 10–12).
Neste texto, lidaremos com a primeira parte: a rebeldia do ímpio.
“Por que se enfurecem os gentios”
Os dois primeiros versos deste salmo são citados em uma oração realizada pelos irmãos da igreja de Jerusalém, após Pedro e João serem soltos da prisão onde estavam devido à pregação do evangelho no templo. A pregação deles causou bastante alvoroço, de tal forma que as autoridades não puderam puni-los mais severamente, pois o povo glorificava a Deus pelas suas pregações (At 4).
Inicialmente, pode parecer estranho citar um salmo que se refere aos gentios logo após os apóstolos terem sido libertos de uma prisão em Jerusalém por pregar o evangelho aos judeus. É necessário lembrar que tais acontecimentos ocorrem logo depois do pentecostes, com a cidade ainda cheia de Judeus prosélitos[2] e gentios. Além disso, o povo era governado pelos romanos. Desta forma, identificando o “Ungido” como Jesus, a igreja entendeu a prisão dos apóstolos como a resistência a Ele registrada no salmo:
[…] porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram. (At 4:27–28)
É interessante observar como a igreja entendeu tal perseguição como cumprimento de profecia sobre Cristo, estando dentro da soberania absoluta de Deus. E é baseado nesta soberania que, nos versículos seguintes, eles pedem por coragem e intrepidez para pregar ainda mais o evangelho, petição esta que é concedida logo em seguida.[3]
A palavra hebraica aqui traduzida como “gentios” está mais próxima de “nações”, em um sentido mais genérico, não como uma diferenciação a Israel[4]. Tal sentido é ainda mais generalizado na palavra traduzida como “povos”, pois ela significa todo o tipo de pessoas (reinos, etnias etc.)[5]. Tal sentido reforça o uso da passagem pelos apóstolos no contexto mencionado anteriormente. Sobre seu contexto original, Calvino afirma que este intrépido questionamento de Davi demonstra que ele se revestiu de coragem diante da resistência oferecida por seus inimigos ao seu reinado, “não significando que ele confiava em si mesmo como se fosse um rei precipitado, […] senão que apenas seguia a vocação divina”.
“E os povos imaginam coisas vãs”
Temos aqui um pequeno paralelismo com a frase anterior, mas que destaca a irracionalidade do pecado. É vazio e sem sentido enfurecer-se contra Deus e opor-se àquilo que Ele decide fazer, ou nos determina a fazer. Não há lógica em confrontar o Deus eterno e Seu Ungido, a quem Deus deu toda a autoridade, de eternidade em eternidade.[6]
Contudo, a profundidade da depravação humana nos deixa cegos para nossa loucura. A mente dos ímpios (e todos assim nascemos) não cessa de planejar o mal (Sl 38:12; Pv 24:2). A palavra aqui traduzida como “imaginam”, pode ser também traduzida como “tramam”, “murmuram” ou “proferem”. Se trata, então, de várias pessoas juntas trabalhando com o propósito de se rebelarem contra Deus.
“Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o senhor e contra o seu ungido, dizendo: rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas.”
Hei de vos abrir, porém, inteiramente o meu coração, meus amigos; se existissem deuses como poderia eu suportar não ser um deus?! Por conseguinte, não há deuses.
Fui eu, na verdade, quem tirou essa consequência; mas agora é ela que me tira a mim mesmo.
(Friedrich Nietzsche)[7]
Friedrich Nietzsche é amplamente conhecido pela sua máxima: “Deus está morto”. Ele via a humanidade como uma abstração, um agrupamento sem sentido de indivíduos e que o ideal para a humanidade era a elevação do indivíduo, mais dotado e forte. Quanto mais longe ele estivesse da moral cristã, que enfraquecia o indivíduo diante dos outros, mais perto ele estaria deste homem ideal. A frase dele citada acima reflete boa parte de sua motivação para tais conclusões.[8] Reflete também o estado de todo o homem nascido escravo do pecado, absolutamente rebelde contra Deus, e ainda tentado pela mentira da serpente: “sereis como Deus” (Gn 3:5).
As pessoas frequentemente pensam que ficarão livres se conseguirem escapar de Deus. No entanto, inevitavelmente, todos servem a alguém ou a alguma coisa, seja um rei humano, uma organização, ou até mesmo seus próprios desejos egoístas. Da mesma maneira como um peixe não está livre quando deixa a água, e uma árvore não está livre quando deixa o solo, também nós não estamos livres quando deixamos o Senhor. (BCAP[9])
Aqueles que se rebelam contra Deus no desejo de serem independentes dEle, além de não alcançarem esta independência, estão apenas servindo ao Pecado e negando mais ainda a própria liberdade, já que a mesma se encontra apenas em Deus.
Calvino, em seus comentários, destaca que a guerra feita pelos homens é com Deus, sendo então impossível de ser vencida. Quando nós, filhos de Deus, sofremos devido a rebeldia do mundo contra o seu criador, devemos ter em mente que, no final, a guerra será certamente vencida por Ele.
É interessante aqui neste trecho que os homens, além de individualmente se rebelarem contra Deus, incentivam uns aos outros para tal. Pense nas grandes revoluções da história da humanidade ou até mesmo nos inúmeros protestos ocorridos no Brasil nos últimos anos devido nossa situação política. Toda a humanidade está constantemente neste estado de revolução e protesto contra Deus. Juntos, planejam como será o próximo ato e de qual forma afrontarão mais ousadamente o caráter de Deus. Mas Deus não está em silêncio. Veremos nos próximos textos que sua resposta é dura, e as consequências da rebeldia, dolorosas.
“O seu ungido”
Talvez o conteúdo mais curioso destes versículos é a menção ao Senhor e Seu Ungido. No contexto em que Davi fez este Salmo, a referência era da rebeldia dos inimigos dele e da nação de Israel contra o povo de Deus, sendo o Rei o Ungido a quem ele se referia. Contudo, sabemos, à luz do contexto da revelação completa que temos hoje, que há uma dupla referência do Ungido como sendo também Cristo, descendente da linha Davídica que reinaria em nome do Senhor. As referências anteriormente citadas, onde este trecho é mencionado pelos apóstolos no Novo Testamento, reafirmam a argumentação da dupla referência profética.
Durante os próximos estudos deste salmo, veremos com mais profundidade as referências ao Ungido/Messias, buscando entender melhor como ele aponta para Cristo.
Para os rebeldes
Ao chegarmos até aqui, antes de nos atermos à resposta de Deus para tal desafio, ficamos com a deixa para uma reflexão: “por que me enfureço contra Deus e Seu Filho? Por que sou tão tentado pela crença de que a liberdade está na independência da Sua autoridade?”. Ainda que aqueles que negam Cristo tentem transmitir que vivem sem se importar com Ele, a realidade é que, em suas ações, buscam o maior distanciamento possível dEle, mesmo que inconscientemente. Anseiam por poderem definir o bem e o mal, especialmente de forma oposta ao que Deus aprova.
Todavia, estamos em um comentário de Salmos, ou seja, texto direcionado a Cristãos. Nesta situação, é bastante comum desligarmos nossa mente para este tipo de alerta. Da mesma forma, relaxamos nossos ouvidos quando o pregador do culto começa uma mensagem mais “evangelística”. Consideramo-nos convertidos e já afastados de tais problemas. “Não estamos mais entre os que tramam contra o ungido de Deus”, pensamos. Esquecemos que somos profundamente corruptos e que o processo de santificação é uma batalha contra nós mesmos. Basta uma ocasião onde a autoridade de Jesus seja incômoda para nossos desejos, que nossa mente se enche de pensamentos que nos põem na condição de vítima. Somos as vítimas do peso das demandas de Cristo, ou os falsos heróis que conseguem mantê-la a custo de uma suposta vida infeliz. Agimos como servos cuja liberdade foi cerceada por Deus, esquecendo que é justamente a vontade prescrita dEle que nos liberta.
Que estes primeiros versículos do salmo nos sirvam de lente ao observarmos o mundo em nosso redor, mas também sirvam para julgar os nossos desejos e a forma com que lidamos com a vontade de Deus. Não esqueçamos que não há liberdade longe dEle e que Ele resiste intensamente aos orgulhosos (Tg 4:6). “Bem-aventurados os humildes, porque deles é o reino dos Céus” (Mt 5:3).
Pois, embora vivamos como homens, não lutamos segundo os padrões humanos.
As armas com as quais lutamos não são humanas; pelo contrário, são poderosas em Deus para destruir fortalezas.
Destruímos argumentos e toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levamos cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo.
Notas
[1] Esta divisão é também utilizada pela Bíblia MacArthur, por Cavino e pela Bíblia de Genebra.
[2] Judeus que moravam em outras terras após a dispersão do exílio, que, na páscoa, iam para Jerusalém. Muitos, inclusive, não sabiam falar hebraico — vide milagre das línguas ocorrido no Pentecostes.
[3] O início da oração destaca a confiança deles na soberania de Deus: “Tu, Soberano Senhor […]”, v. 24.
[4] Esta mesma palavra é usada, por exemplo, em Gênesis 12:2: “farei de você uma grande nação”, quando Deus promete descendência a Abraão.
[5] Mais informações no comentário de Jamieson Brownlink, acessado em 13/03/2019, disponível no link https://www.biblestudytools.com/commentaries/jamieson-fausset-brown/psalms-1-75/psalms-2.html.
[6] Um bom artigo e pequeno artigo sobre a irracionalidade do pecado, por Thabiti Anyabwile, disponível em: https://www.thegospelcoalition.org/blogs/thabiti-anyabwile/sin-is-irrational/. Recomendo também uma pesquisa sobre “Efeitos noeticos da queda”. Já adianto: não tem nada a ver com Noé.
[7] NIETZSCHE, F. W. Assim falou Zaratustra, II. Nas Ilhas Bem-Aventuradas. Obtido no site http://www.thelema.com.br/espaco-novo-aeon/conteudo/uploads/2012/05/Friedrich-Wilhelm-Nietzsche-Assim-falou-Zaratustra-Versao-1.0.pdf, em 23/03/2019. Grifo meu.
[8] Para uma breve introdução sobre o ponto de vista cristão da filosofia de Nietzsche, recomendo o vídeo “Jesus, Nietzsche e Dostoiévski”, com Jonas Madureira. Disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=IDiPzCEUR7Y, acessado em 23/03/2019.
[9] Bíblia Cronológica de Aplicação Pessoal
Referências
Bíblia de Estudo Cronológica Aplicação Pessoal. (2015). Rio de Janeiro: CPAD.
Bíblia de Genebra Revista e Ampliada. (2009). São Paulo: Cultura Cristã.
Bruce K. Waltke, J. M. (2015). Os Salmos como Adoração Cristã. São Paulo : Shedd.
Calvino, J. (2013). Comentário de Salmos (Vol. 1). São Paulo: Editora Fiel.
Crossway. (2013). Gospel Transformation Bible. Wheaton, Illinois: Crossway.
Peixoto, L. (18 de fevereiro de 2016). Salmo 2 | A supremacia de Cristo. Fonte: YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=27S3SEdwHo0
Various. (1962). The Wycliffe Bible commentary. Chicago: Moody Press.