Salmo 4.1: Orando a um Deus pessoal

O Deus que se relaciona com Seu povo

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
10 min readJul 24, 2020

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Rembrandt, The Return of the Prodigal Son, 1669.

Responde-me quando clamo, ó Deus da minha justiça; na angústia, me tens aliviado; tem misericórdia de mim e ouve a minha oração. (Sl 4:1)

O Salmo 4 é aquele tipo de oração que, mesmo em grande parte direcionada a Deus, tem como objetivo acalmar a alma daquele que a faz. Além da autoria no título do salmo, não existem muitas indicações de contexto histórico. Tendo várias semelhanças com o Salmo 3, é comum contextualizá-lo no mesmo período: Davi sendo perseguido por Absalão.

A igreja primitiva utilizava o Salmo 4 em sua liturgia como um salmo noturno congregacional. Da mesma forma foi utilizado no período monástico e até influenciou guias de oração comunitária Anglicano e Metodista. Isto se dá pela sua característica de afirmar confiança pelo nosso constante experimentar da fidelidade e misericórdia de Deus: se até aqui ele nos sustentou desta forma, como um povo com quem ele tem aliança, confiaremos nEle e submeteremos a Ele o nosso coração nos desafios de hoje e amanhã.

“Responde-me quando clamo”

Quem pertence a uma igreja local há algum tempo já ouviu e até fez muitas orações públicas. Tais orações, mesmo dentro de círculos protestantes mais avessos à liturgias bem definidas, possuem um formato bastante semelhante entre si. As orações onde chamamos e até confrontamos Deus de forma intensa deixamos para o ambiente privado.

Quem, em uma oração pública em um momento solene, começaria uma oração com um clamor tão direto, sem antes uma liturgia para demonstrar reverência prévia? Quando lemos este tipo de clamor nos salmos, tendemos a associar aos nossos anseios individuais em nossos momentos privados de oração. No entanto, como o restante do salmo deixa claro, Davi escreveu esta oração em forma de cântico para ser usada pela comunidade do povo em aliança com Deus, contendo confrontações e utilizando tanto a primeira pessoa do singular (eu) quanto do plural (nós).

Atualmente, muitos estranhariam entrar em uma igreja cuja liturgia inclua a oração coletiva de salmos. Certamente há o risco delas se tornarem mecânicas, mas o quão mecânica é a liturgia das nossas orações “espontâneas”? Quanto da nossa expressão, individual e coletiva como igreja local, está realmente refletindo corações cheios do Espírito?

Keller afirma que a oração é “a principal maneira de experimentarmos profunda transformação — a reordenação dos nossos afetos” e acredito que os salmos são uma das melhores formas de aprendermos a orar.

O Deus a quem oramos

Inspirados em Agostinho, que em oração a Deus questionou “o que amo quando te amo?”, podemos perguntar: “a quem clamo, quando te clamo?”. Dentre as várias definições filosóficas e teológicas oriundas das Escrituras que temos de Deus e seus atributos, a que mais se destaca neste salmo é o aspecto relacional de Deus. Tendo em vista o salmo ter como objetivo ser orado ou cantado pela congregação do povo de Deus e sabendo que hoje somos este povo como igreja, podemos extrair quatro características de Deus no relacionamento conosco:

1) Deus da minha justiça

Não foram poucas as situações em que Davi foi acusado falsamente e sofreu injustiça. Contudo, mesmo quando não havia mais esperança terrena de que justiça fosse feita, Davi tinha convicção de que Deus vingaria todo o mal. Diante disso, Calvino afirma que “se não podemos encontrar justiça em parte alguma do mundo, o único apoio de nossa paciência se encontra em Deus e em descansar felizes na equidade de seu juízo”.

Calvino ainda propõe a seguinte pergunta: como Davi poderia clamar por “minha justiça” se nossas boas obras são apenas como um pano imundo (Is 64:6)? Ele responde que Davi não utilizava sua justiça para se gabar diante de Deus, mas para clamar a Deus por justiça, devido ao que seus inimigos intentavam contra ele. Podemos ainda acrescentar que, para aqueles que têm em Cristo o seu salvador e tiveram a justiça dEle colocada em si, as boas obras já não são mais como “trapos de imundícia”. Para DeYoung, “é claro que nossa justiça jamais é capaz de aplacar a ira de Deus. Precisamos da justiça imputada de Cristo para isso […]. Mas como crentes nascidos de novo, é possível agradarmos a Deus por meio de sua graça”. Essa justiça imputada foi expressa mesmo no AT pelo profeta Isaías:

Regozijar-me-ei muito no SENHOR, a minha alma se alegra no meu Deus; porque me cobriu de vestes de salvação e me envolveu com o manto de justiça, como noivo que se adorna de turbante, como noiva que se enfeita com suas joias. (Is 61:10)

Quando usarmos esse salmo em nossas orações e clamarmos por “Deus da minha justiça”, poderemos ter esse trecho de Isaías em mente e lembrar que nossa justiça é dada por Deus e, portanto, é Ele quem nos purifica e nos torna justos em nossas ações e perante Ele mesmo.

2) Deus que alivia na angústia

Existem algumas diferenças nas traduções deste salmo quanto à afirmação de Davi sobre o alívio que Deus trazia para suas angústias. Ele pode ter dito isso no passado, como que em memória a tudo que Deus já havia feito e era baseado nessa fidelidade que ele clamava por novo auxílio. Davi poderia também estar se referindo a uma característica constante do relacionamento de Deus com ele. Ao conhecermos quem é Deus pelo restante das escrituras e como foi a vida de Davi, essa questão exegética perde um pouco da relevância: Deus já havia muitas vezes aliviado Davi, certamente estava fazendo naquele momento e o faria ainda muitas vezes. Davi sabia que o Deus com que ele se relacionava o amava e lhe dava descanso.

Em hebraico a palavra traduzida como angústia (tsar) significa algo pequeno, estreito e sufocante. É usada para se referir também a aflições, adversidades e outros. Curiosamente, isso não é tão diferente da etimologia da palavra que usamos: angústia. Sua origem está na palavra grega angor que, por sua vez, é usada hoje para se referir a uma dor sufocante no peito (angina) causada pelo estreitamento das artérias. Seu principal sentido é “estreitamento”. Com isso em mente, é de se imaginar que a palavra aqui traduzida como “alívio” (rachab) signifique alargar ou abrir espaço.

Poucas sensações descrevem melhor o nosso sofrimento que a de estar sendo sufocado. Encontramos situações em nossa vida que parecem uma armadilha de filmes de aventura, onde as paredes começam a se aproximar e ficamos cada vez mais apertados. Quanto mais o tempo passa, menos chance temos de encontrarmos uma saída antes de sermos totalmente esmagados. Em diversos momentos nos sentimos sufocados, sem sono, preocupados e nossa mente busca energicamente a solução, mas parece apenas percorrer por horas um labirinto, terminando no mesmo lugar que começou. Como alguém que se afoga, quanto mais o tempo passa maior o desespero, até que as forças se acabem e só reste o silêncio e a desesperança. A angústia leva ao desespero que, por sua vez, é o oposto da esperança: quanto mais desesperados e temerosos ficamos mais nossa esperança se esvai. Nesses momentos, todos aqueles cuja salvação e justiça estão no Senhor podem confiar que serão aliviados.

Se antes do encontro com Cristo todos são como mortos afogados no fundo de um mar profundo, sem reação e esperança, cujo pecado sufoca, escraviza e mata, e ao encontrá-lo somos resgatados e recebemos vida para O vermos e O amarmos, quanto mais seremos cuidados e aliviados como filhos adotados e regenerados. Assim como Davi, somos parte do povo com quem Deus fez aliança, obtendo dEle o alívio temporário para vivermos nossa vida e extraindo esperança do prometido alívio definitivo vindouro, onde Cristo irá reinar para sempre. Lembremos de como Deus se apresentou a Elias em um momento de profunda angústia:

Disse-lhe Deus: Sai e põe-te nesse monte perante o SENHOR. Eis que passava o SENHOR; e um grande e forte vento fendia os montes e despedaçava as penhas diante do SENHOR, porém o SENHOR não estava no vento; depois do vento, um terremoto, mas o SENHOR não estava no terremoto; depois do terremoto, um fogo, mas o SENHOR não estava no fogo; e, depois do fogo, um cicio tranquilo e suave. Ouvindo-o Elias, envolveu o rosto no seu manto e, saindo, pôs-se à entrada da caverna. Eis que lhe veio uma voz e lhe disse: Que fazes aqui, Elias? (1 Reis 19:9–13)

O Deus que é fogo consumidor e cavalga as tempestades em defesa dos seus é também suave, tranquilo e silencioso, como um som baixinho gostoso de ouvir.

3) Deus misericordioso

Neste salmo Davi se apresenta pertencente ao povo da aliança, clamando por Deus na confiança de que ambos tinham um relacionamento estabelecido em um pacto entre Deus e Seu povo. Um dos pontos altos do registro deste pacto está no Êxodo, quando Moisés pede para que Deus se mostre a ele e Deus esconde Moisés sob uma pedra e passa por ele enquanto pronuncia o Seu nome. Eis o que Deus disse sobre si mesmo:

E, passando o SENHOR por diante dele, clamou: SENHOR, SENHOR Deus compassivo, clemente e longânimo e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até à terceira e quarta geração! (Ex 34:6–7a)

Ao clamar para que Deus tenha misericórdia dele, Davi não está pedindo a Deus nada além de como Ele mesmo se revelou ao Seu povo. Misericórdia faz parte do relacionamento de Deus com os seus. Todos aqueles que estão em aliança com Deus podem contar com Sua misericórdia. Tal coisa se dava na antiga aliança e tem seu ápice na nova, onde em Cristo somos perdoados e em Cristo nossas dívidas são pagas.

Diante disso, a ousadia de chegar diante do trono da graça de Deus e alcançar a Sua misericórdia é permitida a todos os que tem Cristo como sumo sacerdote (Hb 4:16), ou seja, estão em um relacionamento com Deus e possuem o seu coração guardado por Ele. Segundo Snaith, “A misericórdia não vincula nenhuma obrigação de atender à necessidade: ela é inteiramente espontânea e totalmente imerecida”. Não há obrigação moral externa a Deus que o imponha a obrigação a ser misericordioso com todos, visto que, em termos gerais a misericórdia divina é um compadecer do Seu coração em não nos dar o que merecemos. Isso é claro quando Deus mesmo associa sua misericórdia ao Seu perdão, como vimos no texto de Êxodo. Pouco antes do versículo citado acima, Deus diz a Moisés que “terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia” (Ex 33:19). Toda a benevolência que Deus promete ao Seu povo é por livre espontaneidade do seu amor para conosco. Só podemos clamar pela mais profunda misericórdia de Deus, expressa a nós hoje em Cristo, se tivemos com nosso coração inclinado a estabelecer com Ele uma aliança de salvação eterna, que recebemos graciosamente.

Dessa forma, Davi nos demonstra o que Keller defende sobre nossas orações serem sempre uma resposta ao que Deus já falou. Ele não clamava por uma misericórdia que ainda não sabia existir ou que apenas esperava que existisse, mas clamava em resposta à misericórdia que Deus já tinha anunciado para Seu povo. A oração de Davi era imersa na Palavra. Assim, “só sabemos para quem oramos ao aprender primeiramente isso na Bíblia”.

Ao clamarmos a Deus por ajuda, perdão e misericórdia, o fazemos baseado na intensidade dos nossos sentimentos ou na confiança de quem Ele se revelou ser?

A misericórdia de Deus não é a superioridade caprichosa e arbitrária da vontade do monarca, mas a amplitude da característica de um Deus amoroso para com o arrependido que não despreza sua graça. (Waltke)

4) Deus que ouve

Todos os que, como eu, desde pequenos participaram de alguma igreja e viveram em um ambiente profundamente influenciado pela cosmovisão cristã, correm o risco de deixarem passar o tremendo contraste que existe entre o Deus pessoal e trino cristão e os outros deuses anunciados. O nosso Deus não criou o ato de se relacionar, amar e ouvir, mas em si mesmo, eternamente, se relaciona consigo mesmo nas pessoas do Pai, Filho e Espírito. Diferente dos outros monoteísmos e politeísmos, Deus já amava e era amado na eternidade passada pois era amor em si mesmo, sem nenhuma disputa, em harmonia e unidade. Por outro lado, diferente dos inúmeros misticismos e panteísmos, o nosso Deus, único verdadeiro, se revela pessoalmente ao homem, de forma que este o encontra fora de si e sua identidade e individualidade encontram nEle significado, sem a necessidade de uma diluição da individualidade em algum “vazio” ou uma introspecção tão profunda que vê a racionalidade como uma barreira. A Deus devemos amor com todo o ser, incluindo nosso entendimento. A comunicação entre nós e Deus é uma conversa pessoal iniciada por Ele em uma linguagem compreensível para nós.

Só sabemos que Deus nos ouve porque ele antes se revelou a nós como um Deus que ouve. Oramos em resposta ao próprio Deus e levantamos nossa voz, seja em alegria, súplica ou lamento, na certeza de que Ele nos criou para um relacionamento com Ele e, por termos a Sua imagem em nós, somos capazes de ouvi-lo em Sua Palavra, responder a Ele e obtermos dEle resposta. Quanto mais conhecemos ao Deus da Bíblia, mais temos certeza do Seu controle e da sua disposição em se relacionar conosco.

[…] lançando sobre o Senhor os apertos pelos quais somos pressionados, descansamos plenamente satisfeitos com a segurança de que nenhum dos nossos males lhe é desconhecido e de que ele é capaz de fazer o melhor para nós e está desejoso de fazê-lo. (Calvino)

Conclusão

Creio que podemos resumir e aplicar o que aprendemos neste versículo nos seguintes pontos:

  1. Certamente canções e orações espontâneas tem valor e seu lugar dentro da vida cristã, mas é inegável o valor didático dos salmos para nossas orações, especialmente ao nos guiar no uso da Palavra em nossa comunicação com Deus. Não podemos negligenciar o orar e meditar a palavra, tanto em nossa devoção particular quanto nos cultos públicos.
  2. Nossas orações não devem ser feitas a um deus da nossa imaginação, mas ao Deus Vivo apresentado na Palavra. Devemos orar confiando nas características sobre si que Ele mesmo nos revelou. O Deus revelado nas escrituras é infinitamente superior a qualquer ser que possamos imaginar.
  3. O Deus cristão é um Deus pessoal e que se relaciona conosco por meio de uma aliança. Não se trata de um relacionamento casual, mas de uma aliança feita por Deus conosco usando a si mesmo como autoridade desta aliança. Não invocamos uma energia e não buscamos mover algo mecânico e impessoal, mas nos relacionamos com alguém.

No próximo texto, sobre o verso 2, veremos como Davi se posicionou publicamente diante da maldade dos poderosos e o que podemos aprender com o posicionamento dele e com os pecados daqueles que Davi acusava.

Que passemos a orar de acordo com o caráter de Deus revelado e, pelo Espírito Santo, consolar nossos corações em conhecimento experiencial de quem Deus é e em resposta à Sua Palavra.

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).