Salmo 4.3: Deus em aliança

A confiança de Davi de que Deus não abandona aqueles que elege.

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
5 min readNov 26, 2020

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Recorte de Psalm 34:8, Full of Eyes

Sabei, porém, que o SENHOR distingue para si o piedoso; o SENHOR me ouve quando eu clamo por ele. (Sl 4:3)

Continuando seu discurso aos homens poderosos, Davi declara sua aliança com Deus e que, por consequência dela, ele era ouvido em suas orações. Ao mesmo tempo que clama para que Deus o ouça, ele já anuncia confiantemente aos homens que Deus está com ele.

O SENHOR distingue para si o piedoso

Não é novidade que o relacionamento de Deus conosco se dá por meio de uma aliança. Tal noção era profundamente forte no Antigo Testamento e é recorrente na linguagem de Davi. O próprio nome utilizado aqui para se referir a Deus (traduzido como Senhor) é o nome que Deus usou para se revelar na aliança com Seu povo — YHWH. A declaração se trata, portanto, de um relacionamento pessoal de Deus com o piedoso. Esse relacionamento se dá com Deus distinguindo, separando-o para si.

A palavra traduzida aqui como “distingue” é a mesma usada em vários momentos em Êxodo (8:22; 9:4, 11:7), onde Deus faz distinção entre os Israelitas e os Egípcios, ou seja, Ele separa Israelitas para si e os toma como propriedade, como Seu povo. Portanto, o piedoso é separado por Deus pessoalmente e intencionalmente para um relacionamento de aliança com Ele. O professor de Antigo Testamento e Hebraico, Bruce K. Waltke, em seu livro “Os Salmos como Adoração Cristã”, define essa palavra como “distinguir uma pessoa dentre outras de uma forma extraordinária de modo que as pessoas possam reconhecer a dignidade do escolhido”.

A palavra “piedoso”, por sua vez, pode ser traduzida como “santo” (Sl 16:10) O piedoso não é alguém que faz as coisas certas e é escolhido por Deus pelas suas boas obras, mas o piedoso é alguém que está em relacionamento com Deus. Algumas traduções, como a ARC, trazem o verso destacando este aspecto: “o SENHOR escolhe o que lhe é querido”. Podemos observar, então, que Deus possui uma aliança especial com todos os que têm um relacionamento com ele, ou seja, todos os que possuem aliança com Deus necessariamente têm um relacionamento especial com ele.

Diante disso podemos avaliar nossa própria aliança com Deus, hoje nova por meio de Cristo: temos um relacionamento com Deus? Confiamos fazer parte do povo que Ele separou para si?

O SENHOR me ouve quando clamo por ele

Em nossas orações particulares é comum declararmos confiança em Deus. Isso se dá também quando oramos juntos no ambiente de igreja. É quase parte do “dialeto” cristão expressarmos e recomendarmos a confiança em Deus. Oramos pedindo por confiança, as músicas que cantamos nos chamam a entregar tudo a Deus, a confiar nEle incondicionalmente e em oração pedimos para que Deus fortaleça a nossa confiança nEle. Certamente isso é ótimo e não pode ser desprezado, mas aqui Davi dá um passo adiante, um passo que muitos de nós tememos dar: Davi confessa publicamente diante daqueles que desejavam o seu mal que Deus o ouvia e que ele tinha uma aliança com esse Deus. Nem todo o que proclama tem aliança verdadeira com Deus, mas todo o que tem aliança verdadeira com Deus tem o papel de proclamá-la em sua vida.

Tal atitude de Davi contrasta com muitos de nós: ao observarmos as mentiras e vaidades de nossa sociedade, repetidas como um refrão até parecerem verdades irrefutáveis e que opor-se a elas poderia até nos trazer prejuízos pessoais, reduzimos nossa confiança em Deus para foro íntimo e acabamos demonstrando (1) uma desesperança pública, (2) uma desconexão entre a realidade e nossas crenças e (3) a ideia errônea de que a cosmovisão cristã não é compatível com a realidade pública.

Aqueles que, devido ao temor dos homens, escondem sua fé no foro íntimo e não expressam a certeza de que Deus os ouve e guia ofendem a Ele em suas orações, visto que não oram com convicção de serem ouvidos, mas apenas com uma distante expectativa. Segundo Calvino, toda a oração deve ser feita com convicção de sermos ouvidos e com o desejo sincero pelo que pedimos, pois sem isso as nossas orações não passariam de zombaria contra Deus. Ele diz:

É necessário, pois, que a oração do fiel proceda desses dois afetos e que os contenha a ambos a saber, que gema pelos males que sofre no presente e que tema outros novos; mas, ao mesmo tempo, que se acolha em Deus sem duvidar de modo algum que Ele está preparado e disposto a ajudá-lo. Porque certamente Deus se irrita sobremaneira com nossa desconfiança se lhe pedimos algum favor pensando que não o podemos alcançar dele.

Se tivermos em nosso coração a certeza de que Deus nos ouve, não temeremos anunciar tal coisa em nossas orações, do mesmo modo anunciamos que Ele ouve nossas orações e que satisfará toda a Sua justiça. Todos nós servimos e proclamamos alguém ou algo. Aqueles que, professando Cristo no seu íntimo, não o proclamam publicamente por temor, certamente já servem a outro diante dos homens. Sabendo que tudo fora de Deus é mentira e que esta é filha do Diabo, ou proclamamos a Cristo ou a Satanás. Não existe meio termo.

Conclusão

Thomas de Kempis, em A Imitação de Cristo, escreve a seguinte oração:

Bendito seja o Teu Nome, Senhor, para sempre; pois quiseste que sobrevieste sobre mim esta tentação e tribulação. Não posso fugir, mas preciso recorrer a Ti para que me ajudes e convertas tudo para meu proveito. […] Socorrei-me, Deus meu, e não temerei, por mais que seja atribulado. […] O que direi diante desta presente tribulação? Senhor, que a Sua vontade seja feita. […] Poderosa é a sua mão para me livrar desta grande tentação, ou para aliviar esta violência, para que eu não sucumba; assim como tantas vezes o fizeste por mim, meu Deus e minha misericórdia! E quanto mais difícil para mim, muito mais fácil é para Ti […]. (Thomas de Kempis)

Como está a nossa confiança em Deus diante das adversidades que Ele tem nos dado? Certamente nossas orações nunca serão perfeitas aqui e a misericórdia de Deus para conosco é imensurável, mas devemos levar profundamente a sério o nosso agir público e privado e como até mesmo nossas orações podem ser apenas zombarias de uma religiosidade vazia.

Que Deus nos ajude a viver como indivíduos em aliança com o Deus vivo, em confiança de que Ele sempre nos ouve.

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).