Salmo 2.7–9: O reinado do Filho

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
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8 min readApr 26, 2019
Recorte de “Psalm 110:2 + Matthew 27:37”, Full of Eyes

Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro. (vv. 7–9 ARA)

“Proclamarei o decreto do SENHOR”

Este trecho se inicia com o anúncio de uma mudança de tom. Até então, o salmista se referia aos ímpios e à resposta de Deus à rebeldia apresentada por eles na terceira pessoa. Agora, no entanto, o salmista anuncia o decreto de Deus que serve como base para o seu reinado. Podemos entender aqui que, para assumir a posição de dizer tal coisa, Davi tinha alguma consciência da autoridade que suas palavras possuíam. Além disso, tal declaração é uma evidência de que este salmo foi escrito para uma coroação.

“Tu és meu filho, eu, hoje te gerei”

Conforme já vimos anteriormente, este salmo possui muitos aspectos messiânicos. Este trecho, especificamente, é utilizado por autores do Novo Testamento como se referindo a Jesus, com o propósito de evidenciar seu papel. No entanto, creio ser importante primeiro entendermos melhor este texto em seu contexto original.

O reino de Davi e de seus descendentes era associado à filiação divina. Vemos isso em 2 Sm 7:8–16, onde é dito que o filho de Davi construiria o templo e seria filho de Deus. Diferente dos povos pagãos da época, cujos reis se declaravam deuses ou filhos de deuses, o próprio texto explica o significado de ser filho de Deus: o filho seria castigado por suas transgressões, mas nunca deixaria de ter a misericórdia do Pai. Todavia, um estranho elemento era adicionado aqui: o reino da casa de Davi e sua descendência seria eterno. Precisamos, portanto, fazer uma diferenciação aqui entre o (1) “ser como filho” de Deus, recebendo Seu castigo e misericórdia e, no contexto direto, construindo o templo que Davi desejava construir e (2) o Rei davídico cujo reinado seria eterno.

A referência a “hoje” evidencia que uma cerimônia de coroação era o propósito inicial do salmista. Entretanto, considerando o texto de Samuel mencionado anteriormente, Davi poderia ter escrito este salmo para a coroação de Salomão e não ter sido usado na sua. Ainda que tal informação não seja tão relevante para a aplicação do texto, seu posicionamento histórico nos informa da possível maturidade de Davi ao escrevê-lo.

A importância de entendermos o propósito original deste salmo se dá em sua aplicação a Jesus no Novo Testamento. Jesus é chamado de Filho de Deus em várias passagens, como Mt 3:17, Mc 1:1 e 11, Lc 3:22. Entretanto, alguns teólogos arianos[1] argumentam que o trecho “hoje te gerei” mostra que tal filiação não implica uma natureza divina em Jesus, pois teria sido Ele criado por Deus. Ter em mente o contexto do salmo ao realizar a leitura nos ajuda a perceber que “gerar” está relacionado com a coroação, ou seja, a exaltação pública do Ungido por parte de Deus, onde, diante de todos, a autoridade sobre os céus e a terra lhe seria entregue.[2]

O anúncio do reinado do Ungido é associado, no Novo Testamento, à ressurreição (At 13:33). Nela, é dado a Jesus “o nome que está acima de todo o nome” e, a este nome, se dobrará “todo o joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra” e toda a língua confessará “que Jesus Cristo é Senhor, para a glória de Deus Pai” (Fp 2:9–11). Tal reinado é também associado ao sacerdócio de Cristo (Hb 5:5).

“Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão.”

Textos do Antigo Testamento que se referem a Deus ou a Cristo utilizando desta linguagem “monárquica” podem nos parecer distantes e a ênfase que as Escrituras dão à soberania de Deus corre o risco de nos passar despercebida. Todavia, suas aplicações à vida cristã individual e comunitária são bastante amplas. Temos visto durante o estudo deste salmo que a autoridade de Deus e do Ungido é o tema central. Neste trecho, temos mais uma pista da dupla referência entre o rei israelita e o Ungido. O terreno de Israel se limitava aos israelitas e era geograficamente localizado e limitado. Já aqui, o Reino do Ungido alcança toda a terra, nada escapa de Seu controle.

Cientes da revelação do Novo Testamento, sabemos que Jesus é o Ungido de Deus e, em Sua primeira vinda, inaugurou o Reino de Deus aqui na Terra. A expansão deste reino se dá pela pregação do Evangelho[3]. Como cristãos, recebemos a missão de embaixadores do Reino, com o propósito de anunciá-lo a todos, sendo, hoje, este o nosso principal papel. Diante disso, precisamos sempre ter em mente a centralidade da autoridade de Cristo no cumprimento de nossa missão.

Em Mateus 28:18, temos a autoridade de Cristo como fundamento da pregação do Evangelho. Não existe missão sem a clara, constante e exaustiva autoridade de Cristo sobre tudo o que fazemos, sobre o que acontece e, especialmente, sobre os corações dos nossos ouvintes. Nossa infidelidade em cumprir a missão se dá não apenas por uma falta de amor aos perdidos ou por acomodação, mas principalmente por uma baixa consideração da soberania de Jesus.

Em seu livro sobre chamado missionário, Yago Martins diz que “não podemos ter uma noção coerente sobre missões se não tivermos uma visão coerente sobre as motivações do próprio Cristo a respeito do assunto”[4]. Neste livro, ele faz uma análise crítica das nossas motivações para as coisas que fazemos na igreja, especialmente a pregação do evangelho, e destaca que toda a base e o propósito estão na autoridade de Jesus. Com isso, “o primeiro objetivo da pregação do evangelho não é salvar almas; é glorificar a Deus”[5].

Portanto, sempre que pregarmos o Evangelho, precisamos lembrar que toda autoridade vem de Cristo. Ele é o Rei e é por esta autoridade que, mesmo que ninguém se converta, a condenação trazida àqueles que ouvem e negam a Palavra também faz parte da glória pertencente a Deus. Devemos, sim, fazer por amor às pessoas, mas, primeiramente, é a Cristo a quem devemos ter nosso maior compromisso. Tenhamos sempre em mente que, conforme vemos neste salmo, a base do reinado do Ungido é Sua autoridade sobre tudo o que existe. Tudo foi feito por Ele, para Ele e por meio dEle.

“Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro.”

Conforme já foi observado anteriormente, a linguagem monárquica pode nos ser difícil de entender pela distância temporal e cultural que temos do autor do Salmo. A figura do rei deste salmo evoca tanto um governante do poder executivo, quanto um legislador e juiz supremo. Ele era responsável pela aplicação da justiça, pela defesa do povo e pela manutenção das leis, ainda que, mesmo no governo de Israel, não o fizesse sozinho.

No livro de Apocalipse (12:5 e 19:15), Jesus é este rei supremo que governará toda a terra, e esta é a base da nossa esperança final. Ele também é o juiz que a todos julgará (Jo 5:22) e o legislador[6] da Nova Aliança.

Em Romanos 9:19–21, temos a soberania divina exaltada, de forma que, diante dela, o homem é humilhado. Ainda que não seja o propósito do texto lidar com a relação da soberania de Deus com a responsabilidade humana, é necessário sempre destacar nossa posição diante de Deus. Somos como vasos de barro. Não pertencemos a nós mesmos e vivemos segundo o propósito que nos foi designado. Como cristãos, somos embaixadores de um reino cujo Rei terá seu governo exaltado diante de todos para sempre.

CONCLUSÃO

Poucas coisas são tão centrais na teologia cristã quanto o Reino de Deus. Muito se discute sobre o “já e ainda não” que os evangelhos expressam sobre a chegada deste reino. O próprio Cristo contou diversas parábolas em analogia à chegada do reino. É a promessa do reino que torna a cosmovisão cristã não apenas a melhor forma de interpretar o passado e o presente, mas também de entender o propósito final de todas as coisas.

A tensão criada pela espera da vinda definitiva do reino se dá pelo nosso limitado conhecimento sobre ele. No entanto, conhecimento limitado é diferente de conhecimento nenhum. As Escrituras nos dão informação suficiente para sabermos o que é mais importante deste reino, seu propósito e nosso papel nele. O trecho acima estudado do Salmo 2 enfatiza a autoridade de Deus ao mesmo tempo que nos ensina um pouco sobre o relacionamento interno da Trindade. O Pai tem sua justiça e seu governo glorificados ao exaltar o Filho e, diante de todos, o declarar como governador, juiz e legislador de toda a criação.

Portanto, para nós cristãos, ao exaltar a autoridade de Jesus, este texto nos mostra que todos os nossos movimentos de proclamação do Reino, seja comunitariamente, seja individualmente, devem ser precedidos por um profundo temor à autoridade de Cristo. Nossa posição deve ser de confiança e submissão ativa à Sua vontade. Diante da autoridade dEle, não há autoridade sob o Sol que seja suficientemente grande para justificar qualquer omissão diante do que nos é ordenado em Sua Palavra.

Caso deseje receber uma versão do estudo em PDF, envie um e-mail solicitando o estudo que deseja para salatiel.costabairros@gmail.com. Sugestões de textos e temas também são bem-vindos.

Notas

[1] Teólogos que defendem que Jesus não possui natureza divina, sendo apenas um ser criado superior aos outros. Seguem a heresia de Ario. Um exemplo são as Testemunhas de Jeová.

[2] Temos neste texto uma pequena evidência de que o Reino de Cristo possui tanto aspectos espirituais quanto físicos, especialmente no que se refere à escatologia. Entretanto, por hora, não me arriscarei a comentar muito mais que isso sobre o assunto.

[3] Tal verdade não implica, necessariamente, em uma escatologia pós-milenista.

[4] Você não precisa de um chamado missionário, Yago Martins, lc. 211.

[5] Ibid., lc. 766. Logo adiante, Yago também afirma que “Amor a Deus é o único motivo suficiente para a evangelização. O amor próprio resultará em egocentrismo; amor pelos perdidos fracassará em relação àqueles que não podemos amar; e quando as dificuldades parecerem insuperáveis, somente um profundo amor a Deus nos manterá na sua vontade”, lc. 819;

[6] Alguns teólogos afirmam que, em sua vida aqui na Terra, Cristo apenas cumpriu papel de intérprete da lei, sem legislar sobre ela. Pessoalmente, creio que a forma com que Ele lidou com o sábado, com o casamento e, especialmente, o sermão da montanha, mostram Jesus como um legislador. No entanto, mesmo aquele que afirma Jesus como um intérprete em Sua missão na Terra, concordará que, em uma visão escatológica, Ele será exaltado como o legislador supremo do universo. Função esta que já possui, mas ainda não revelado diante de todos.

Referências

Bíblia de Genebra Revista e Ampliada. (2009). São Paulo: Cultura Cristã.

Bruce K. Waltke, J. M. (2015). Os Salmos como Adoração Cristã. São Paulo : Shedd.

Calvino, J. (2013). Comentário de Salmos (Vol. 1). São Paulo: Editora Fiel.

Martins, Y. (2016). Você não precisa de um chamado missionário. Concílio.

Various. (1962). The Wycliffe Bible commentary. Chicago: Moody Press.

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).