Uma filosofia cristã (Filosofia #2)

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
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7 min readFeb 6, 2024
“Pintura estilo medieval sobre a relação da teologia cristã com a filosofia” — Gerado por Microsoft Image Creator

A decisão de começar a estudar sobre qualquer tópico sempre exige que algumas definições iniciais sejam feitas. Não é diferente com o estudo da Filosofia, especialmente no seu relacionamento com a teologia cristã. A busca dos últimos anos dentro das igrejas por uma cosmovisão cristã e uma filosofia cristã gera muitas discussões e confrontações, sejam elas internamente na igreja ou externamente com a sociedade. Não é raro encontrar, diante de tudo isso, confusões acerca do que realmente significam essas coisas. Algumas vezes, inclusive, as disputas se iniciam já logo na definição dos termos.

Diante disso, meu propósito aqui é refletir sobre o que significa falarmos sobre uma “filosofia cristã” e como esse relacionamento entre filosofia e teologia pode acontecer. Não pretendo resolver nenhuma disputa metodológica ou epistemológica acerca do assunto, mas estabelecer um ponto de partida para a discussão e indicar um caminho possível para o início do estudo dessa matéria.

O que é filosofia?

Sem dúvida precisamos começar estabelecendo o que é filosofia. Etimologicamente, a palavra significa “amor à sabedoria”. Partindo disso já podemos perceber que filosofia não é exclusivamente uma abordagem racionalista ao conhecimento. Por outro lado, para alguns “filosofia” tem o sentido de ser uma busca de se aproximar da verdade via especulação autônoma. Nesse sentido, John Frame afirma que a própria filosofia pode ter se desenvolvido a partir da rebelião contra o conhecimento tradicional, ou seja, encontrar as respostas por meio do pensamento humano livre e independente. Contudo, esse aspecto de rebelião não pode ser tido como uma característica definidora da filosofia, visto que ela pode englobar muitas percepções de sabedoria.

Na prática, filosofia é uma tentativa de articular e defender uma visão de mundo. Diferente das ciências, que buscam entender aspectos particulares da realidade, a filosofia quer lidar com aspectos mais gerais. Essa articulação sobre visões de mundo envolve três grandes áreas:

  1. Metafísica: estudo das características gerais do universo. Por que existe algo ao invés de nada? Por que as coisas são como são? Quais são as estruturas mais fundamentais da realidade? Deus existe?
  2. Epistemologia: estudo sobre o conhecimento. O que é conhecimento? Como podemos saber qualquer coisa? É possível ter algum conhecimento real? Qual a relação do conhecimento com a experiência dos sentidos?
  3. Teoria do valor: teoria que inclui a ética, estética e moralidade. O que define a bondade e a maldade? O que é a beleza? Como se desenvolve uma ética?

Diante de tudo isso, um “filósofo cristão” expressa sua fé e cosmovisão de forma simples para pessoas leigas e filosoficamente profunda para ambientes mais acadêmicos ou reflexivos. Em ambos os casos ele estará fazendo filosofia. Podemos expandir ainda mais para uma afirmação feita por John Frame de que “todos somos filósofos”, visto que “as questões filosóficas são perguntas que todos nós fazemos”, especialmente nós cristãos.

O que é teologia?

Para avançarmos na reflexão sobre o que seria uma filosofia cristã, precisamos também definir o que seria a parte “cristã”. Nesse sentido, precisamos entender o que é a teologia cristã. Ela nada mais é do que o estudo da revelação divina a nós. A teologia é a articulação da cosmovisão da revelação divina. Nesse sentido, a teologia cristã é uma filosofia com uma cosmovisão cristã. É o resultado da fé cristã na Palavra de Deus.

É importante, no entanto, deixar claro que fazer teologia não é a mesma coisa que produzir pensamentos filosóficos. A teologia trabalha sobre os pressupostos da revelação dada por Deus, assumindo já uma teoria do valor, metafísica e epistemologia baseadas nessa revelação. Por outro lado, isso não significa que a teologia necessita das categorias filosóficas para alcançar a revelação, ou que seja uma disciplina inferior à filosofia.

Dado que a teologia seria essa articulação da visão de mundo proveniente das Escrituras, ela é uma busca por aproximar-se da verdade que foi revelada por Deus. Nessa busca, acabamos por ter várias tradições e cosmovisões cristãs em disputa. Algumas estão mais próximas da verdade do que outras, mas a teologia produzida na nossa tentativa de entender mais sobre quem é Deus através do conteúdo da revelação dEle a nós não pode ser considerada com o mesmo grau de inspiração divina ou de verdade que a revelação em si. Isso significa que a teologia cristã está correta naquilo que as Escrituras concordam com ela. O resto é erro ou, no mínimo, especulação.

Teologia versus Filosofia

Agostinho, em seu livro sobre a Trindade, fez uma distinção entre a sabedoria, que seria “a contemplação dos bens eternos”, e a ciência, “a ação que nos permite fazer bom uso dos bens temporais”. No entanto, ele dizia que a ciência é essencial para a nossa salvação, pois estamos dentro do tempo e, neste mundo temporal, é por meio dela que alcançamos a sabedoria. Isso é algo que ele faz na prática no seu livro ao investigar na realidade sinais da Trindade. A filosofia, portanto, seria uma disciplina que, ao observar o mundo, pode servir para nos levar à sabedoria, nesse sentido Agostiniano do termo.

Um questionamento essencial que precisamos fazer ao buscar uma teologia cristã é se existe qualquer tipo de hierarquia entre essas disciplinas. Estaria a filosofia acima da teologia, dado que a teologia faz uso de muitas ferramentas e categorias da filosofia para estudar a revelação? Ou, por outro lado, estaria a filosofia submissa à teologia, no sentido de que a verdadeira filosofia só poderia ser obtida a partir da correta interpretação das Escrituras?

Segundo Josué Reichow, na filosofia cristã neocalvinista, “falar de uma filosofia cristã não é falar de uma teologia cristã, mas de uma filosofia que esteja sob a orientação do motivo base cristão”, ou seja, ela “não tem a intenção de subordinar a filosofia à teologia, como se a teologia fosse a verdadeira filosofia”, visto que “o papel da filosofia é compreender e discernir a estrutura da realidade”.

Essa independência entre filosofia e teologia pode levar ao questionamento: existem afirmações teológicas acerca da fé que não podem ser provadas racionalmente via a filosofia? Ou ainda, existem afirmações filosóficas racionalmente justificadas que podem contradizer algum elemento da teologia? A verdade da teologia é, de alguma forma, mais pura ou mais verdadeira do que a verdade obtida na filosofia via o uso da razão? Podemos chegar à pergunta de Tertuliano:

Que tem a ver Atenas com Jerusalém? Ou a Academia com a Igreja? Ou os hereges com os cristãos? A nossa doutrina vem do pórtico de Salomão, que nos ensina a buscar o Senhor na simplicidade do coração. Que inventem, pois, se o quiserem, um cristianismo de tipo estóico e dialético! Quanto a nós, não temos necessidade de indagações depois da vinda de Cristo Jesus, nem de pesquisas depois do Evangelho. Nós possuímos a fé e nada mais desejamos crer. Pois começamos por crer que para além da fé nada existe que devamos crer.

Tertuliano não está criticando a existência da filosofia em si, mas a substituição da teologia, da nossa fé, pela filosofia, ou pior, a corrupção da fé cristã para se encaixar em alguma filosofia específica. Existe, portanto, um sentido onde o conteúdo da fé não pode se sujeitar à filosofia. Isso, todavia, significa que a fé não está submissa à razão?

Alvin Plantinga, no seu livro “Conhecimento e crença cristã”, defende que a crença cristã é justificável e que não há nenhum “salto no escuro” na aceitação da doutrina cristã. Ou seja, a crença cristã não é, de forma nenhuma, irracional e não se opõe à razão. As nossas dificuldades com a crença vêm do efeito do pecado sobre nós e que a aceitação da crença é uma ação externa em nós que, de certa forma, liberta a nossa razão para perceber o mundo como realmente é.

É possível observar que a relação de teologia e filosofia, assim como de fé e razão, é bastante complexa. Existem as epistemologias das crenças, metafísica, pressupostos e a própria diferenciação entre filosofia, sabedoria e teologia. Esse é certamente um assunto que merece um texto dedicado. O objetivo aqui é deixar claro que essa é uma discussão importante para o desenvolvimento de uma filosofia cristã bíblica.

Fundamentos de uma filosofia bíblica

Podemos tentar entender a filosofia cristã como composta por algumas características principais:

  1. Distinção clara entre criador e criatura. Deus é auto existente e é a origem de tudo o que existe. A realidade é determinada por sua vontade e seu caráter, mediante seu poder e Palavra.
  2. Sendo Deus a fonte de tudo que existe, a racionalidade e as leis da lógica também têm sua origem em Deus. Dessa forma, a revelação de Deus não pode ser irracional, pois isso iria contra o caráter do próprio Deus.
  3. Deus, como criador dos seres humanos e do mundo, criou uma ambiente compatível com nossa cognição, onde é possível se obter verdade.
  4. O pecado afeta todas as áreas da vida humana, inclusive a razão. A nossa razão passa a aceitar a crença em Deus após ser curada pelo Espírito Santo. Isso não quer dizer que crentes e descrentes são incapazes de concordar em qualquer coisa ou que um descrente nunca possa alcançar nada verdadeiro, mas que toda a vez que ele faz isso, o faz utilizando da razão que Deus lhe deu, utilizando pressupostos “emprestados” da crença cristã mesmo para afirmar a sua descrença.

Certamente outras características poderiam ser pensadas para uma filosofia cristã, mas creio que essas são as mais úteis para esta nossa reflexão sobre o tema. Estou ciente que essas características possuem pressupostos bastante “Vantilianos”, ou de uma apologética pressuposicionalista. Pretendo tratar sobre isso em outro momento.

Conclusão

Quando falamos de uma filosofia cristã, não estamos defendendo um cristianismo misturado com filosofias, ou uma substituição da teologia pela filosofia. Uma filosofia cristã busca entender o mundo e responder às grandes questões a partir da crença cristã, mas sem negar ou ferir a razão, dialogando com todas as oposições à fé. Dessa forma, é necessário conhecimento tanto sobre teologia quanto sobre como as filosofias do nosso tempo estão tentando responder às perguntas existenciais, sejam elas metafísicas, sobre os valores ou epistemológicas.

Espero que este texto tenha servido como um estímulo para o estudo e uma apresentação sobre o tema. Como eu disse anteriormente, não falo como um especialista em filosofia, mas como um leigo interessado no assunto e que percebeu na própria vida e vocação a necessidade de entender melhor o impacto da crença cristã no nosso contato com a realidade. Que Deus ilumine nossa razão para refletirmos sobre Ele e sobre o mundo que Ele criou com precisão e devoção.

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).