//A Cabana, Deus-Mãe e a Geração Mimimi

Saleiro
Saleiro
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7 min readApr 12, 2017

Até hoje eu me lembro do dia em que num Acampamento onde moro e trabalho, fiz uma oração pública e chamei Deus de Mãe. Por conta da presente falta de unanimidade em relação ao uso desse termo, minha falta de sabedoria levou pra casa alguns problemas. Se você estava lá e ficou com muita raiva de mim, eu quero te pedir duas coisas: primeiro, saiba que te deixar com raiva não foi minha intenção, e segundo, leia esse texto até o final porque talvez ele seja esclarecedor.

Nos últimos dias tenho ouvido muitas críticas a respeito do filme “A Cabana” e por isso decidi unir um texto que escrevi no início do ano à roupagem atual que o filme nos concede.

A maioria dessas críticas se refere a um possível ensino distorcido daquilo que é a Trindade (aquele papo de Deus ser três e um ao mesmo tempo, lembra?). Apesar de sabermos que a preocupação do filme não é tecer uma nova ideia sobre esse assunto, mas apenas compartilhar a perspectiva de um Deus que é sensível ao sofrimento humano, algumas pessoas têm se posicionado contra a ideia de um Deus que se revela como uma mãe.

Para conversarmos sobre isso, precisamos entender a Bíblia e a tradição Cristã como acontecimentos históricos que surgiram dentro de determinados contextos sócio-culturais e acontecimentos que sofreram tentativas de “apropriações” por grupos de pessoas que mais conseguiram impor suas vozes diante da maioria. E que fique claro, nesse jogo, injustamente, não é sempre a maioria que ganha. Você se lembra do que disse George Orwell: “A história é escrita pelos vencedores?” Pois é, mas e a versão dos perdedores? É justamente a falta dela que faz do relato histórico um relato incompleto.

Se a tradição cristã, que é formada de interpretações (vozes hermenêuticas) acerca da Bíblia, também participa desse cenário aonde se disputa quem fala mais alto, podemos concluir que as vozes pretas e femininas (assim como várias outras) não foram levadas em conta na formação coletiva e consensual dessa tradição, afinal, se hoje a desigualdade “vocal” permanece, que dirá a 2000 anos atrás?

Visto isso, caminhamos conscientes de que as interpretações carregam consigo pressupostos que são frutos de nossas identidades, afinal, como diz Gottfried Brakemeier, “nossa mente, nossos olhos e nossos ouvidos jamais são neutros. Estão precondicionados por um determinado mundo experimental, que lhes determina a percepção”. E é por causa disso que existe um reflexo gigante dessas “vozes dominantes na história” que elas mesmas nos contaram.

Pergunta: Você nunca estranhou o fato de um ser humano concebido no seio do Oriente Médio ser pintado de cabelos loiros e olhos azuis?! Um Jesus europeu foi apenas uma projeção identitária de historiadores e pintores europeus, claro, muito mais privilegiados do que um artista africano.

É fato que a influência de toda essa realidade de Interpretação nos alcança até hoje, e se manifesta, por exemplo, quando vemos alguém ofendido, em nome de um suposto conjunto de dogmas distantes da realidade, ao ouvir Deus sendo chamado de Mãe.

“Mas calma aí, Guilherme, Deus é Pai e quem o chamou assim foi o próprio Jesus!”

Deixo claro que pra mim faz sentido pensar que a ausência do termo ‘mãe’ nas palavras do Mestre foi a consequência de uma escolha sábia, e sabedora de que num contexto machista, androcêntrico, patriarcal e intolerante ao Feminino (leia direito) e às mulheres, chamar Deus assim provavelmente seria um escândalo “blasfêmico” maior do que se dizer filho de Deus, antecipando então a hora de sua Cruz. Jesus escandalizava a religião da época sim, mas escolhia bem que escândalos lhes eram possíveis e que ensinos seriam compreensíveis diante do contexto de sua encarnação. Chamar Deus de Pai, por exemplo, revelando mais de seu caráter pessoal, já era algo bem difícil de engolir! Imagina só, falar que além de pessoal ele traz até nós uma porção de cuidado, de gentileza, de sensibilidade? Virtudes sobretudo muito presentes na Maternidade e nas particularidades femininas.

Como disse o pastor Ed René Kivitz, “Jesus faz questão de apresentar Deus como alguém que não está preso no mundo das ideias, mas imerso no mundo das relações.” Não estamos falando de um Deus funcional, mas de um Deus essencialmente relacional.

Ainda em termos bíblicos é bom lembrar que várias das palavras hebraicas que se referem a Deus pertencem ao gênero feminino! Caso queira conhecê-las melhor, sugiro um Google, mas saiba já que ‘RUAH”, por exemplo (termo referente à Espírito de Deus), é um substantivo feminino. É, pois é.

Essa questão levanta outra: “Deus tem gênero?”

Não, Deus não tem gênero, afinal, ele é uma Pessoa mas não um Ser Humano. Aprendemos com o mesmo pastor citado acima, que “Deus”, na verdade, é um título que nós, cristãos, etiquetamos em Javé, reconhecendo sua autoridade sobre nós e submetendo-nos a ela.

É importante lembrar que Ele se revela dentro de termos presentes nas nossas antropologias e relações e em suas respectivas funções sociais. É por isso que vemos Ele sendo chamado de pai, de amigo, de mãe, etc.

Mas que fique claro que Deus em sua essência é um Ser Relacional, mas não É pai, mãe ou qualquer outra função social; Deus não é uma função (e nem cabe em apenas uma), ainda que ao longo da história elas tenham sido preenchidas de significância.

Alister McGrath, também citado pelo professor Franklin Ferreira em seu texto referente ao mesmo tema que você está lendo aqui, diz que apesar de “afirmar que a figura do pai na antiga sociedade israelita é um bom modelo para representar Deus, isso não equivale a dizer que Deus pertença ao gênero masculino ou que esteja limitado aos parâmetros culturais do antigo povo de Israel”.

De seu caráter, sabemos que Deus É O QUE É, O “Verdadeiro Eu Sou”, e assume essas funções ao mesmo tempo que as extrapola. Ele faz isso pra que o humano consiga percebê-lo um pouco melhor dentro dos limites do seu mundo e de sua linguagem. Aprendi com um dos meus professores, que segundo Calvino, a revelação é como se fosse um balbuciar de Deus pra sua criação ainda incapaz de compreendê-lo em plenitude. Deus se “antropomorfiza” (se revela em formas humanas) para que nossa espiritualidade seja mais palpável. Deus pode se mostrar como um pai assim como pode se mostrar como uma mãe, e ouso dizer que mãe negra, principalmente num Brasil onde estas figuras são o mais vasto exemplo no que é segurar a barra de ser mãe.

Ao dizer tudo isso, quero te garantir que diferente de algumas vezes em que me posicionei na internet acerca de assuntos polêmicos, minha intenção dessa vez não é causar, mas sim, além de esclarecer algumas questões, tentar alcançar a algumas pessoas que por causa de experiências frustrantes de paternidade nunca puderam conhecer um Deus pessoal e cuidadoso.

Pessoas que por causa de traumas como violência, abuso, abandono e negligência paterna nunca puderam ter uma referência saudável do que é ser Pai, e por nunca terem chamado a Deus de pai, não desfrutaram da plenitude de seu amor. Sabemos que nossas primeiras “teorreferências” (referências de Deus) para nós são os nossos pais, e Deus também sabe disso. Ele se revela como pai e como mãe, mas sobretudo, Ele é amor, e ama, podendo então preencher quaisquer lacunas que seu pai ou sua mãe não se preocuparam ou não puderam preencher. Inclusive, assim como na Bíblia, “A Cabana” está mais preocupado em te dizer algo dessa categoria, do que te ensinar uma doutrina sobre Trindade ou seja lá o que for (você já parou pra pensar que Trindade é um termo cristão que nem aparece na Bíblia? Isso é outro assunto). Mesmo com suas limitações, digamos, teológicas, é um filme que fala de um Deus que chora o choro de seus filhos e filhas, e isso importa bastante. Deus está contigo.

“Eu vi que Deus se alegra em ser nosso pai, assim como ele também se alegra em ser nossa mãe; e que se alegra ainda em ser nosso amado, nosso verdadeiro esposo, tendo nossa alma como sua noiva amada… Por natureza, ele é o fundamento, a própria substância de todas as coisas. Ele é o verdadeiro pai e a verdadeira mãe do que as coisas são por natureza.”

Juliana de Norwich

Por último registro meu lamento; não o lamento que será resultado de te ouvir me chamando de “herege-liberal-ideólatra” após ignorar as intenções primeiras desse texto, mas o lamento que é fruto da quase-certeza de que se essas palavras tivessem sido escritas e publicadas por uma mina, por um preto, por uma mina preta, ou por qualquer outro representante de qualquer minoria, você que as leu/ouviu e viu ao menos alguma possibilidade de verdade, as resumiria como mais um MIMIMI das minorias da “geração mais chata da história”. Isso é lamentável.

E é por isso que encerro esse texto afirmando que: se tratando do combate à injustiça e da proclamação da igualdade humana, Deus é mais chat@ que mãe quando tá preocupada com o filho que ainda não chegou em casa!

Que o Deus que está acima de todas as polêmicas te abençoe, com o amor da mãe que despede o filho ao sair de casa, e com o amor do pai que o acorda pra ir pra escola.

— Guilherme Pinheiro

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