//A disputa narrativa pelo corpo de uma criança negra

O que a briga entre um militante do MBL e da Marcha das Favelas tem a nos ensinar.

Daniel Wanderley
Saleiro
3 min readSep 24, 2019

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Tarde de domingo chuvosa no Rio de Janeiro, o clima de luto que partiu da zona norte e atravessou toda a cidade não foi suficiente para que o youtuber Gabriel Monteiro, policial militar ligado ao Movimento Brasil Livre — MBL, se deslocasse até o local do velório da menina Ágatha Félix, 8 anos de idade, morta na sexta-feira durante operação da Polícia Militar na Fazendinha, Complexo do Alemão, para produzir mais um vídeo para o seu canal no youtube.

Gabriel é conhecido na internet por publicar vídeos em que promove debates sensacionalistas com militantes partidários ou cidadãos comuns que tem a esquerda como orientação política. Com conteúdo sempre superficial procura destacar questões polêmicas que tem polarizado a sociedade, com pouca ou nenhuma construção, mas muita lacração para alimentar milhares de seguidores sedentos por humilhação e escárnio público.

O canal é, inclusive, uma boa síntese do conteúdo político que tem abastecido as redes: a dinâmica do jogo político do inimigo, naturalizando a ideia de que o debate político é vencido com a desmoralização e humilhação pública de quem pensa diferente.

A maior infelicidade de Gabriel naquela tarde de domingo ainda estava por vir. Na tentativa esdrúxula de debater com pessoas que manifestavam solidariedade à família da menina Ágatha e/ou protestavam contra a política de segurança pública genocida do governo do Estado do Rio de Janeiro, o PM youtuber cruzou com um integrante do movimento Marcha das Favelas, Felipe Gomes, que, revoltado com a ação completamente inconsequente do PM, tentou expulsar o youtuber repetindo as barbáries cometidas pelos agentes de segurança do estado.

O encontro entre os militantes do MBL e da Marcha das Favelas não terminou bem e como pode ser visto no vídeo que viralizou nas redes, Felipe Gomes não manteve a calma com a presença do youtuber após o enterro de mais uma criança morta pela violência do estado e tenta intimidar o youtuber, que perde totalmente a razão e desfere um soco contra Felipe.

Então, tudo perde o sentido.

O caso virou palanque político em todas as mídias e é o retrato do nosso tempo. Gabriel não tinha direito de promover qualquer debate em um momento de dor e protesto legitimo contra a ação covarde da polícia que resultou na morte de mais uma criança. Tampouco Felipe deveria ter escoltado Gabriel até o seu carro.

Toda essa história é doente e ignora o fato central daquele dia: uma menina negra de 8 anos de idade foi assassina. Nada mais deveria importar, aquele não era um momento de debate ou intimidação, não era um momento de ódio ou gravação, aquele era um momento de luto. Mas na era das narrativas, a solidariedade e a sensibilidade não são virais para mobilizar seguidores entorpecidos, a disputa narrativa supera todos os outros valores ali envolvidos.

“Eles pegam nosso sangue ainda quente, nossos pedaços destroçados no asfalto, esfregam pelo corpo e vão fazer mídia, implorando para não nos matarem enquanto o foco real é apenas atacar seu opositor político.” — paráfrase livre de Celinha Rosa

De repente, Ágatha vira um pano de fundo, o contexto, o pretexto, menos a protagonista sobre tudo o que está acontecendo ali. Tanto para Gabriel como para Felipe, a morte de Ágatha ficou em segundo plano. O oportunismo desmoralizador, que intimida e silencia narrativas, discursos é que protagoniza, enquanto o corpo negro, humano, infantil, pequeno, frágil é simbolicamente dilacerado.

Mataram uma menina. Mas a guerra é narrativa.

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