//A heresia de Butler e o linchamento da liberdade

Sobre bruxas, fogueiras e portais.

Guilherme Pinheiro
Saleiro
3 min readNov 21, 2017

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Poderia ser numa semana qualquer de 1752, mas pasme, foi na terça retrasada, dia 7 de Novembro de 2017. Um portal se abriu nas margens do SESC Pompeia e uma viagem no tempo foi oferecida à todas as pessoas ali presentes. Destino, Idade média.

Sim: dois grupos, frente à frente como que antecedendo uma batalha entre inimigos na disputa de um território; uma guerra por quais vozes berrariam mais alto; e imagens da filósofa Judith Butler foram os rostos que vestiram bonecas de bruxas,

representações estas que foram queimadas numa fogueira sob gritos que se confundiam entre “queima a Butler” e “Pai Nosso que estás nos céus”. De um lado, microfone aberto e alguns bons argumentos, e do outro, coros como “quem odeia a ideologia de gênero faz barulhooo!”.

Pude ver ali, um cidadão com trajes militares com estampas em favor da intervenção militar, e com uma bíblia na mão; outro com um semblante tomado por ódio, e com um crucifixo na mão; e um terceiro meio perdido, e com um terço na mão.

E antes que você faça qualquer julgamento, saiba que minha crítica a essas seis mãos não está naquilo que seguravam, mas em serem as mesmas mãos que vibravam “morte” e celebravam o fogo que fulminava o boneco de Butler. Esses três pisotearam o boneco de Butler, xingaram e comemoraram suas cinzas.

Matar em nome de “Deus” é um problema antigo ao qual retornarmos regularmente. Judith foi “bruxificada” como se isso fosse algo ruim, mas lembre-se, não estamos falando de “bruxas malvadas” como aquelas que crescemos assistindo na sessão da tarde, “bruxas” eram também mulheres ousadas e que não se satisfaziam com os limites de conhecimento que lhes eram impostos por uma sociedade machista e que selecionava quem teria acesso à informação. Bruxas eram ameaçadoras não por seus feitiços, mas por sua coragem de pensar o que era proibido e censurado, questionando estruturas e pedagogias estatais violentas e opressivas. Judith foi tratada como os hereges sempre foram tratados ao longo da história, e é sobre esse campo que se localiza minha reflexão.

Pode ser prepotência de minha parte, mas sou tendencioso a dizer que 98% das pessoas que ali estavam a fim de expulsá-la sequer leram a obra ou algum fragmento da obra de Butler, e ainda que houvessem lido, me pergunto que crueldade é essa que nos faz fundir as pessoas com suas ideias ao ponto de queimarmos pessoas no afã de silenciarmos pensamentos diferentes. Que insegurança é essa que faz com que um ser humano agrida e ofenda outro a fim de proteger suas “verdades”? Como já disse anteriormente,

o fundamentalismo é a insegurança dos fanáticos.

Os equilibrados não são os que tem muitas certezas, mas aqueles que convivem bem com suas dúvidas.

Talvez você esteja lendo esse texto à procura de termos que me identifiquem em pólos políticos, mas escrevo o que escrevo a fim de defender a liberdade de pensamento. Não escrevi isso para defender o pensamento de Judith Butler, mas para defender suas possibilidades de pensar e continuar elaborando sua filosofia.

Concluo sonhando com o dia em que nossas inseguranças intelectuais não se traduzam em violência, mas em humildade suficiente para um diálogo empático e respeitoso. Vislumbro uma cidade intelectualmente diversa e profundamente livre, onde os mais diversos atores e atrizes sociais sentam-se à mesa sem a preocupação de impor suas certezas, mas cheios do desejo de ampliar seus horizontes através de conversas críticas e amorosas, profundas e leves, divergentes e respeitosas. Sonho com o dia em que nas margens do SESC Pompeia se abrirá um portal que nos leve a viajar para o tempo futuro, e não para o atraso.

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