// Eu, Jesus e o Bom Samaritano

Saleiro
Saleiro
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8 min readMar 16, 2017

Se você é cristão, com certeza já ouviu a parábola do “bom samaritano”. Se não é, já deve ter ouvido a expressão “bom samaritano” — geralmente usada como ironia feat. deboche. Existem algumas coisas que me fizeram voltar nessa parábola esses dias, um monte de “coincidências” ou, como alguns crentes, mais crentes que eu, dizem, “Jesuscindências” — eu amo o crentês! Sqn — Beleza, respira e vai. Tentarei não ser ácido.

Essas coincidências começaram a me apontar pra esse texto tão revelador de Jesus, um texto simples, porém denso. Aquele tipo de texto que quando nos colocamos no lugar adequado é difícil de ser lido. Na real, acho que todas as palavras de Jesus são assim, mas nos superestimamos tanto! Quer dizer, eu pelo menos sim. Pecado confessado. To no Caminho.

A parábola é encontrada no livro de Lucas capítulo 10, um dos quatro evangelhos. Ela começa com um homem, um perito da lei de Moisés, um daqueles nerds no assunto — o cara que era muito bom na parada. Esse homem faz uma pergunta a Jesus, sua intenção não era adquirir conhecimento, era adquirir prestígio. Seu objetivo era travar um debate com Jesus, era deixar o mestre numa “saia-justa”. Quero falar sobre algumas percepções do texto e, de antemão, afirmo: não espere algo genial ou inovador, é apenas um texto consequência por ouvir outros homens mais velhos e tentar entender o que Jesus tem a nos ensinar.

“Certa ocasião, um perito na lei levantou-se para pôr Jesus à prova e lhe perguntou: “Mestre, o que preciso fazer para herdar a vida eterna?”
“O que está escrito na Lei?” , respondeu Jesus. “Como você a lê?”
Ele respondeu: “ ‘Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento’ e ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’”.
Disse Jesus: “Você respondeu corretamente. Faça isso, e viverá”.
Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: “E quem é o meu próximo?”
Em resposta, disse Jesus: “Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos de assaltantes. Estes lhe tiraram as roupas, espancaram-no e se foram, deixando-o quase morto.
Aconteceu estar descendo pela mesma estrada um sacerdote. Quando viu o homem, passou pelo outro lado.
E assim também um levita; quando chegou ao lugar e o viu, passou pelo outro lado.
Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele.
Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele.
No dia seguinte, deu dois denários ao hospedeiro e disse-lhe: ‘Cuide dele. Quando voltar lhe pagarei todas as despesas que você tiver’.
“Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”
“Aquele que teve misericórdia dele”
, respondeu o perito na lei. Jesus lhe disse: “Vá e faça o mesmo”.
Lucas 10:25–37

Eu poderia abordar inúmeros ensinamentos que esse trecho da Bíblia possui, mas eu gostaria de compartilhar com vocês a pergunta que tenho feito esses dias pra mim mesmo e pra Deus.

Quem eu sou nesse texto?

Óbvio, de prima, antes mesmo de afirmar que eu sou “O Bom Samaritano”, eu gostaria de falar: “eu sou o Jesus, pô!” Aquele que é sábio, que dá as respostas certas pros religiosos, que manda benzão nas metáforas pra deixar todos impressionados com a sua sabedoria e deixar os fundamentalistazinhos no lugar deles. Claro que eu já descartei essa possibilidade, é só você observar a motivação do meu coração em querer ser sábio, você já entende.To escrevendo a real, o que pensei de primeira. É um texto honesto, minha gente. Não me julgue, to tratando isso com Jesus. To no Caminho.

Eu sou o perito da Lei

Quando comecei a refletir sobre esse texto, reparei que eu estava em um lugar em que eu não gostaria de estar, mas no lugar que muitas vezes eu gosto de ocupar, mesmo sem perceber. O lugar do religioso, o lugar de quem gosta de fazer perguntas de quem, no fundo, não possui uma dúvida, o lugar de quem gosta de debates infrutíferos. Jesus tá lá, no meio da parada, resolvendo tretas e mais tretas no ministério, cheio de gente pra curar, cuidar e aconselhar. Lidando com problemas reais — não que ajudar religiosos não seja — mas estava no meio do povão, no chão onde a vida real acontece. Chega um cara, pra arrumar confusão, treteiro nato, o típico inconveniente, o sabichão que gosta de ensinar pra geral, o desconectado da realidade.

Eu sou esse cara quando eu uso o meu conhecimento para entrar em discussões inúteis que não tem o propósito de convergir no outro. Eu sou o perito da lei quando eu me preocupo mais comigo mesmo, quando estou desconectado do chão da vida, eu sou o perito da Lei quando estou mais preocupado em autossalvação do que em escutar os ensino de Jesus sobre o outro. Eu sou o perito da Lei quando leio a Bíblia buscando um jeito de me dar bem, de me colocar em posição de destaque. Eu sou o perito da lei quando esqueço de ser humano.

Eu sou o Sacerdote

Talvez esse seja o personagem da parábola que eu mais goste de ser, que, assim como o perito da Lei, não possui um problema em si mesmo. Mas eu sou o sacerdote da parábola quando eu me preocupo mais em servir minha religião do que ao meu próximo, eu sou o sacerdote quando o conjunto de regras e moral que eu penso ser o correto me impede de olhar pro corpo ensaguentado à beira do caminho. Eu sou o sacerdote quando passo longe do corpo estendido no chão pois acho que sua moral/ética diferente da minha o faz culpado pelo acontecido, eu sou o sacerdote da parábola quando culpo o corpo ensanguentado por estar ensaguentado, quando minha preocupação é com a nudez do corpo no chão, quando penso no que os outros sacerdotes vão dizer ao me verem em contato com algo “impuro”. Eu sou o sacerdote da parábola quando acho que o meu sacerdócio só deve ser exercido em favor de gente que eu penso que deve ser servida, eu sou o sacerdote da parábola quando eu penso que tenho o prumo nas mãos, eu sou o sacerdote da parábola quando acho que Deus é meu Deus e de mais ninguém.

Eu sou o Levita

Esse eu achei que passaria batido, já me “martirizei” muito me colocando no lugar do perito da Lei e do sacerdote da parábola, esse eu vou me dar um “refresco” — mas sim, ler a Bíblia é ser confrontado. Aliás, ler a Bíblia sem ser confrontado é estar lendo a Bíblia de forma errada. Eu sou esse levita que passa longe do corpo no chão, do corpo nu, ensanguentado, da cena trágica quando eu acho que os cuidados do templo são mais importantes que o outro. Eu sou o levita quando penso que rituais são mais importante que pessoas, eu sou o levita da parábola quando tijolos ou a estrutura são mais importantes do que pessoas reais ou com problemas reais. Eu sou o levita quando a ofensa ao templo, a minha religião, quando a quebra dos ritos me ofende mais do que a ofensa ao outro — ao outro que é imagem de Deus.

Como é difícil ler essa parábola e ver os locais em que muitas vezes me encaixo. Confesso que esse trecho em Lucas 10 tem me perseguido, e escrever aqui o que tenho pensado talvez tenha sido uma das coisas mais confrontadoras que já escrevi. Esse texto foi desenrolando de tal forma, que enquanto eu escrevia eu ficava envergonhado, constrangido, acuado. Como se eu estivesse ao lado de Jesus sendo ensinado. Foi muito constrangedor ver que eu preciso tanto ter os olhos de Jesus, logo eu, que muitas vezes penso que estou “pronto” e que sou um discípulo tão “cristão”. Mas esse texto não converge em mim, então é necessário uma pergunta, a pergunta que propõe algo nesse cenário de caos:

Como eu faço pra ser o “Samaritano”?

Primeiro, é preciso compreender quem eram os samaritanos naquele contexto. Pros judeus, eram o pior tipo de gente, comparados a cachorros, gente de segunda classe, escória, gente desqualificada, sem virtudes, gente que não era digno de ser chamada povo de Deus. Quem são esses samaritanos hoje? Enfim, é esse tipo de gente que Jesus utiliza para ilustrar quem fez o correto. É esse tipo de gente “errada” que Jesus usa até hoje.

Eu li um texto do Rev. Caio Fábio esses dias que me marcou muito e faz parte dessa reflexão. Gostaria de compartilhar.

“A gente aprende que todos estão a um passo de qualquer coisa.

A gente aprende que por vezes nem todos os esforços do mundo mudam determinadas realidades.

A gente aprende que muita dor culposa que se sente decorre da culpa da bondade cristã salvadora, a qual assume para si poderes de salvação que não estão em nossas mãos.

A gente aprende a discernir quais são as coisas que podem esperar ante um desespero e quais não podem.

A gente aprende que nem todo desespero tem que parar o nosso caminho também.

A gente aprende, sutilmente, o que é agenda da estrada e o que é agenda do caminho.

Mas ninguém aprende isso sem se sentir levita e sacerdote de vez em quando, posto que nossos atos samaritanos são emblemáticos, mas nossas omissões levíticas e sacerdotais são a regra na agitação de nossas inúmeras distrações.

O pecado é adotar o caminho do levita e do sacerdote como modo de se desviar de gente na estrada. Ora, esse jamais foi ou será o caso de vocês, graças a Deus.

Entretanto, o mesmo samaritano um dia deve ter tido seu dia de levita. Ou, então, ele seria “Ele”. E não era…

Assim, minha oração é uma só nesse particular: “Senhor, faz de mim o samaritano possível no dia de hoje em minha existência! E salva-me dessa horrível tendência natural que tenho a, na estrada, preferir a omissão do caminho do levita e do sacerdote!”.

Sim, pois o mais devotado dos samaritanos tem seus momentos de pressa de levita e de sacerdote. E mais: isto é assim para que todo ato samaritano de nossa vida seja pura glória e graça de Deus sobre nós; e não fruto de nossa certeza de que em nossa existência não existem omissões.”

Eu escrevi um monte de coisa pra responder essa pergunta — mas apaguei— embora eu ache que as palavras do Caio sejam muito melhores que as minhas, e fechariam esse texto de forma muito melhor, acredito que a verdadeira resposta a essa pergunta sejam as palavras de Jesus àquele homem que o perguntou:

“Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”
“Aquele que teve misericórdia dele”
, respondeu o perito na lei. Jesus lhe disse: “Vá e faça o mesmo”.

A Resposta?

Vá e faça o mesmo.

— Yago Gonçalves

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