O Deus do Legião e a nossa Sociedade

R Assis
Saleiro
Published in
6 min readJul 10, 2017

O cristianismo é uma das 3 grandes religiões monoteístas (creem em 1 só Deus) junto com o judaísmo e o islamismo. Entretanto, dentro dessas 3 grandes tradições monoteístas o Cristianismo apresenta uma variação que provoca mudanças significativas na forma como se entende a Deus e nas implicações que esse entendimento provoca para o aqui e agora.

Como falar de Deus não é tarefa fácil, conto com a ajuda de um dos maiores compositores da música nacional dos anos 90, Renato Russo. Ele compôs uma música chamada Índios, fazendo uso da letra dela, peço permissão ao leitor para usá-la como itinerário mesmo que o meu uso não coincida com a intenção original do autor.

“Entender como um só Deus ao mesmo é três”

A variação no monoteísmo cristão diz respeito a Trindade (Deus-Pai, Deus-Filho e Deus-Espírito Santo). É em referência a ela que Renato Russo fala, expressando o desejo de entende-la. Essa palavra não está na Bíblia, foi um desenvolvimento doutrinário a partir das implicações do testemunho bíblico a respeito de Deus (como pode ser observado no evangelho de João). Como diz a música, a Trindade quer dizer que o Deus cristão, sendo um único Deus na verdade são três pessoas. Não estamos falando de três deuses, com Trindade nos referimos a três pessoas divinas que possuem a mesma natureza divina.

Nunca se chegou a uma exaustão do entendimento a respeito da Trindade — provavelmente nunca chegaremos — mas C.S. Lewis no livro Cristianismo Puro e Simples, ilustrou isso de forma surpreendente, ao se referir a figura geométrica do cubo. O cubo, uma figura de 3 dimensões é formado, ao mesmo tempo, por 6 quadrados, uma figura de 2 dimensões. Os quadrados não deixaram de ser quadrados para formar um único cubo. Ou seja, a partir dessa ilustração, conforme temos 6 quadrados em 1 cubo, em Deus, conforme o cristianismo, temos 3 pessoas em 1 único Deus.

Ainda que não cheguemos a exaustão do que a Trindade significa, o fato de crermos num Deus que ao mesmo tempo é três, possui alguma implicações muito interessantes.

Para mim que sou cristão e creio na formulação doutrinária histórica da Trindade com base no testemunho bíblico, entendo que crer em um Deus que é uma comunidade faz com que repensemos algumas características da nossa sociedade.

“Quem tem mais do que precisa ter, quase sempre se convence que não tem o bastante”

Nossa cultura demonstra caminhar cada vez mais para uma absolutização do eu, realçando o caráter individual de cada pessoa (individualismo) como paradigma ético, moral e social. O hiperconsumo aliado a esse individualismo dá o tom da construção de nossas identidades, cada novidade do mercado que é comprada oferece a possibilidade de nos reinventarmos. Com isso em mente o que percebo na Trindade é um paradigma mais robusto tanto para nossas individualidades quanto para os parâmetros relacionais. A partir do Deus Trino é possível chegar a uma série de implicações, porém ressalto apenas duas que seriam completamente diferentes das que provém de uma sociedade individualista e consumista: (a) dinâmicas de relações inter-pessoais e (b)manutenção da individualidade a luz do papel na comunidade.

(a) Ao longo de séculos o Cristianismo tem afirmado que o sacrifício de Cristo na cruz é uma condição necessária para a reconciliação entre o ser humano e Deus, fazendo que Jesus seja mediador entre Deus e mulheres/homens. Porém uma implicação que poucas vezes é ressaltada, conforme Dietrich Bonhoeffer nos diz em Discipulado, é que Jesus também deve ser mediador das relações inter-pessoais. Os Evangelhos testemunham perfeitamente isso, tanto mostrando como Jesus se relaciona com Deus-Pai e com Deus-Espirito Santo quanto ao mostrar o ensino de Jesus afim de uma reconfiguração das relações entre as pessoas, conforme pode ser visto mais explicitamente no Sermão do Monte. Além desse ensino do próprio Jesus, todo o NT propõe uma renovação relações (marido/mulher, chefe/empregado, ricos/pobres..). Após o primeiro século, a reconfiguração das relações sociais proposta pelo cristianismo primitivo no Império Romano foi “revolucionário”. Não seria exagero que o paradigma de todas essas relações se encontrou desde o inicio na própria Trindade.

(b) Dentro da Trindade, vemos também papéis diferentes sendo desempenhando por cada uma das pessoas divinas. Podemos citar como exemplo tanto a Criação quanto a Salvação. Sendo um só Deus, é possível identificarmos os diferentes papeis sendo desempenhados por Deus Pai, Deus Filho e o Espirito Santo, Jesus explicita isso em João 14 a 16 onde, ao longo de um discurso fala da obra que o Espirito Santo irá desempenhar, a qual não pode ser executada pelo próprio Jesus. Esse é um aspecto que pode ser muito melhor desenvolvido do que eu fiz aqui e algumas nuances desse tema tem sido debatido ao longo da história da doutrina cristã, mas acredito que já seja possível perceber que tendo a Trindade como parâmetro, é possível “construirmos” nossas identidades, personalidades e individualidades a luz da comunidade, de modo que uma não esteja e constante oposição a outra. Paulo em suas epístolas aplicou essa verdade ao demonstrar os diferentes papeis a serem desempenhados pelos cristãos no Corpo de Cristo, a Igreja.

“Acreditar que o mundo é perfeito e que todas as pessoas são felizes”

A filosofia social tem se articulado em todos esses temas chegando a diferentes conclusões de qual seria a sociedade perfeita. Acredito que apesar de haverem tantas conclusões diferentes quanto a ordem econômica, politica e social, o que domina o imaginário desses articuladores sociais é o desejo expresso nesse trecho da música. Todos querem um mundo perfeito em que todas as pessoas sejam felizes. Porém, além de faltar um retrato mais objetivo dessa sociedade, a humanidade tem retornado ao antigo projeto da Torre de Babel, conforme descrito em Gênesis 11. Depois de 2 guerras mundiais e a impressão constante de que a qualquer momento a terceira pode estourar, já demos provas da nossa insuficiência de buscar essa sociedade de forma autônoma. Em contra partida acredito que as implicações da doutrina da Trindade incluem temas como política, pluralidade social, gênero, raça entre muitos outros, possam contribuir para alcançar uma ordem social na qual a vida de homens e mulheres possam florescer. Recomendo a leitura de Isaías 65.17–25 e Apocalipse 21 e 22.

“Fazer com que o mundo saiba que seu nome está em tudo”

Desta forma, apesar da nossa incapacidade de decifrar a fundo a Trindade descrevendo todos os detalhes em tons por vezes abstratos, acredito ser possível articularmos essa doutrina cristã afim de chegarmos a um pensamento social com implicações públicas. Essa é uma tentativa muito inicial e rasa afim de chamar a atenção daqueles que creem no Deus Trino afim de que haja contribuição e participação cristã efetiva na sociedade. Cabe ressaltar que há muito a ser feito considerando nossas falhas como Igreja, já que deveríamos ser um apontamento da sociedade baseada na Trindade. Precisamos avançar nessas questões, afim de que exerçamos uma cidadania que dê bom testemunho, ao contrário do que foi feito em tristes casos ao longo da história, de que o nome Dele está em tudo.

Encerro com um trecho de uma das minhas passagens bíblicas favoritas, que tem me servido como incentivo a pensar sobre essas questões:

‘Pois nEle vivemos, nos movemos e existimos’ Atos 17:28

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