// Sobre um Deus feio

Gabriel Marques
Saleiro
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3 min readSep 25, 2017
Foto: Edwin Andrade

“Então me leva à sala do trono, mostra tua beleza, quero ver tua face!”

Essa música, como muitas outras, é fruto de uma cultura gospel que é consumida por milhares de pessoas. Desde o início quero que você entenda que esse texto falará sobre a cultura e não sobre seus consumidores. Já faz um tempo que tenho escrito sobre os deuses que criamos e nesta tentativa falarei sobre aquele a quem chamo de um deus feio.

Construímos a imagem de um deus lindo, que é intocável, puro, que está assentado num trono de onde nos rege. Cantamos pedidos de que nos mostre sua beleza, a qual para nós é manifesta somente quando temos visões e arrepios. Os deuses são lindos no imaginário de seus amantes e na cultura gospel não é diferente: nossas músicas falam de um deus que quando invocado é convencido pela beleza do louvor entoado, então vem e toca corações com sua beleza, aquecendo um suposto espírito.

O desejo coletivo é viver em sua “sala do trono”, onde não há sofrimento. A anestesia da vida — que é marcada por dor — é dada em momentos onde acreditamos ver a beleza de deus e isso nos tira por pouco tempo de uma realidade manchada de dor. Este efeito anestésico nos leva a querer viver de ciclos onde experimentamos de uma realidade mística. Todavia, isso nos causa uma cauterização sobre o que há de mais comum na existência, despertando-nos o desejo de querer viver de viciosos ciclos da presença deste divino, afinal, ele nos leva a uma realidade onde podemos viver sem sofrer.

É até entendível o anseio por fugir da realidade da vida, de fato todos nós buscamos nossas fugas. O que me espanta é criarmos uma cultura que afirma e cria ambientes para que isso ocorra. Ambientes nos quais deus é uma espécie de droga viciante que tem como efeito a cegueira diante do sofrimento alheio.

Viciados no consumo desse ídolo, esquecemos como é a face feia do Deus vivo e nos cegamos através de uma suposta espiritualidade que nos afasta das pessoas.

Nos foi falado que para entrar na sala do trono é necessário fechar os olhos para assim poder ver. Nessa postura nos isolamos em louvores ensurdecedores e em grandes comícios onde todos de olhos fechados se relacionam de forma individual.

Afogados nessa loucura, deixamos de ir de encontro ao Deus feio, sem luzes, sem glória e sem glamour, aquele Deus que brinca em vielas onde o esgoto corre ao céu aberto. Assim, interrompemos nosso encontro com os corpos violados e violentados, nos quais Deus pode ser encontrado. Deixamos de ouvir as pessoas que carregam em si o divino porque a beleza das formas nos parece mais atraente. A face de Deus foi perdendo espaço.

As fugas da realidade e as experiências sobrenaturais não podem tomar o espaço devido à prática do amor que vai em direção aos oprimidos. Anulamos a força de mudança de uma juventude quando as canalizamos em eventos que priorizam um relacionamento horizontal (ou vertical?) com deus. Com Jesus aprendemos que a ação prática é mais duradoura que o deserto.

Precisamos aprender a encontrar a beleza de Deus em corpos que a cultura diz vazios de beleza. Precisamos voltar a sujar os pés na lama existencial que é marcada pelo sofrimento. A igreja precisa voltar a ser relevante para a sociedade, e não apenas dentro do universo gospel.

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Gabriel Marques
Saleiro
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Sobre o que vejo, vivo e tento ser. Seguidor de Cristo buscando ser mais humano em terras distantes da humanidade.