“The waves shall take us somewhere else” | Por Raul Andreo de Paiva

As ondas nos levam para outro lugar

No caótico mar da vida, a música pode nos guiar por águas mais calmas

Vanessa Maria Sant'Ana
Salus: Uma ode à prevenção
7 min readNov 25, 2020

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Por Raul Andreo de Paiva e Vanessa Maria Sant'Ana

Com um encontro marcado com mais de 60 mil pessoas, Gabriella embarca em um pássaro de metal rumo a São Paulo para assistir ao tão sonhado show da sua banda favorita.

Os suspiros, a guitarra, a bateria, o baixo, a voz amplificada que rasga o ar e invade os corações de toda a multidão. Todos reunidos para compartilharem da mesma sensação enlouquecedora, única, sinérgica.

Eles pulam, gritam, choram, e cantam juntos. Certo ou errado? Talvez um mero exagero? Não importa. O que conta é o calor. A emoção. A sensação. Não há espaço para se mover, mas ninguém consegue ficar parado.

2019 — longe de casa, na cidade mais populosa do Brasil, em um evento que transborda energia. Sinergia.

Apenas o melhor dia da vida dela.

Ela deixa a cidade do santo e voa rumo ao lar, em paz. Sem nada sob a língua. Não precisa recorrer ao seu último recurso, o SOS. O oposto da ida, que havia sido ditada pelo seu remédio como uma forma de controlar a incontrolável ansiedade. Ela volta serena para casa, ciente do poder que a experiência proporcionou ao seu corpo, mente e alma. Se deixou ser levada pela maré, flutuando no mar da música em paz.

Gabriella Tiscoski Chessin, de 22 anos, redatora de uma startup de soluções digitais para e-commerce, nasceu em Nova Aurora, não muito longe da cidade de Cascavel, onde atualmente reside. Fascinada pela banda Bon Jovi, ela não foi exceção para o mal do século. Sempre teve problemas com a ansiedade.

O ‘X’ marca Gabriella no grupo. Foto, cortesia da entrevistada.
O ‘X’ marca Gabriella no grupo | Foto, cortesia da entrevistada

Em 2018, a situação se agravou e ela começou a sofrer de frequentes ataques de pânico. Ficar perto de outras pessoas causava nela um desconforto físico e psicológico. Ambientes fechados também contribuíam de uma forma desconcertante para os ataques. Sentia-se nauseada, suas mãos tremiam, uma onda de frio passava pelo seu corpo. Seu coração parecia que ia explodir. Nessas crises, uma outra onda era capaz de amenizar o sofrimento. Uma onda mais quente e confortável. Sonora e musical.

“A música é utilizada como instrumento de cura há centenas de anos em nossa civilização”, diz a musicoterapeuta Chiara Lorenzzetti Herrera. “Ela foi estruturada e formalizada como ciência, musicoterapia, depois da Segunda Guerra Mundial para o tratamento dos soldados sobreviventes”.

A arteterapia é um processo psicoterapeutico que se utiliza da arte como intermédio entre o profissional e o paciente.
A arteterapia é um processo psicoterapêutico que se utiliza da arte como intermédio entre o profissional e o paciente.

Chiara é psicóloga e atua, desde 2002, como musicoterapeuta na Clínica Infantil de Saúde Mental e leciona na Universidade Alpha, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Também é especialista em Psicologia Corporal Reichiana, Deficiências Múltiplas e Instrumentalização para Lutos e Perdas, com formação em Estimulação Precoce para o Autismo e Protocolo Ouro para Tratamento do Autismo. Em todas essas frentes, é possível notar a influência da música.

“Por meio da produção musical, o sujeito percebe sua voz e seu corpo no espaço/tempo da música e também na relação que se estabelece com o outro, com quem se faz música”. A música, portanto, cumpre funções sociais, mas também psicológicas, com efeitos individuais significativos. “A música pode eliciar sensações e sentimentos diversos. Ela pode evocar memórias, modificar estados internos”, o que pode explicar um fenômeno na plataforma de vídeos TikTok.

No aplicativo, um “movimento” em destaque desde o início da quarentena no #foryou dos usuários mostra como a música tem um poder terapêutico. “Músicas que vão fazer você se sentir vivo” (do inglês: song’s that’ll make you feel alive) tem elencado, dentro de diversas hashtags, canções que mexem com o inconsciente do usuário, despertando assim uma sensação de bem-estar.

O impacto deste movimento foi tão expressivo que os usuários desenvolveram diversas variações no mesmo tema. Milhões de visualizações e comentários partiram disso. Independentemente do estado de espírito no momento, essas playlists compartilhadas mexem com o emocional dos usuários, fazendo-os se sentir “vivos”.

Noel Marie Torres Royer é uma usuária do aplicativo e, no dia 12 de maio de 2020, publicou um vídeo em que aparece no carro, dirigindo, enquanto canta com tudo de si a música Electric Love, do cantor e compositor americano Børns. Em seguida, ela indica, por meio de capturas de tela, algumas das músicas que fazem com que ela se sinta viva. O vídeo já contava com mais de 455 mil curtidas e mais de 3 mil comentários no fim de outubro. Um deles ilustra o sentimento compartilhado: “Obrigada por essa playlist, eu tenho escutado sem parar há semanas” (tradução livre).

O caso de Noel é apenas uma gota d’água em um oceano de vídeos que os usuários publicam buscando despertar sentimentos e a imaginação de quem os assiste. O fenômeno deixa claro que a música tem poder sobre nós, que ela nos impacta fortemente. Para cada crista, temos um vale, para cada certeza, uma dúvida. Por que a música mexe tanto conosco?

Batidas, acordes e palavras cantadas afetam várias regiões do nosso cérebro gerando reações diversas.

Afeta o córtex motor, que controla o movimento, o acompanhamento de ritmos com os pés, a dança. Para quem toca algum tipo de instrumento, também ocorre a ativação dessa área cinzenta do cérebro. Ativa também o córtex pré-frontal, responsável pelo planejamento, atenção, organização e criação de expectativa.

O córtex visual na música se ativa quando lemos uma partitura, e até mesmo quando observamos os movimentos fluidos que alguém faz ao tocar um instrumento. Agora, o núcleo accumbens e a amígdala são ativados, dando respostas emocionais ao contato com a música. O hipocampo, que é uma área responsável pela nossa memória e experiências musicais.

Visualização aproximada das partes do cérebro | Arte por Raul Andreo de Paiva

O cérebro todo é convocado para participar quando fazemos música, ou estamos em uma sessão de musicoterapia.

Esses sentimentos podem acabar não sendos os mesmos para todos. “Cada pessoa tem sua história e gosto musical”, explica Chiara, “portanto, uma música extremamente irritante para alguém pode ser especialmente prazerosa para outro”. A música é uma junção de elementos. O ritmo provoca uma série de reações, da mesma forma que a letra traz uma mensagem. Em cima disso, cada canção tem uma história, não só com os cantores e compositores, mas com o ouvinte.

Terapia da dança é uma conexão entre corpo e mente capaz de liberar tensões acumuladas usada por profissionais da saúde.
A terapia da dança é usada por profissionais da saúde. Uma conexão entre corpo e mente capaz de relaxar e liberar tensões acumuladas.

Por isso, a musicoterapia é uma prática que deve ser realizada apenas por profissionais graduados ou pós-graduados. Sem o treinamento adequado, a análise do paciente sairá prejudicada.

Como ilustramos, a música interage com o indivíduo em vários níveis e, portanto, cada indivíduo terá uma reação distinta a toda e qualquer música distinta. É preciso tomar cuidados que só um profissional licenciado em musicoterapia será capaz de levar em conta no diagnóstico.

Precisa-se entender que canções usar e quais excluir da playlist. “Inclusive se a música tem servido para perpetuar um estado depressivo, por exemplo, mesmo que se ame determinada música ou gênero musical”, diz Chiara. Se não se tem esse cuidado no tratamento, corre-se o risco de deixar ser levado pela maré.

“Parece óbvio, todavia há muitos profissionais não musicoterapeutas que se intitulam como tal pelo simples fato de fazerem uso, no tratamento de pessoas com Transtorno do Espectro Autista, de um teclado durante horas fechada no seu quarto [paciente] e isso lhe tira a possibilidade de interação com seus familiares.”

A musicoterapeuta coloca que “a música promove a interação por excelência”, o que ajuda no desenvolvimento da comunicação não verbal, essencial para pessoas no espectro. Isso mostra a importância de procurar um profissional especializado.

Isso não exclui a possibilidade de experienciar a música individualmente. A música do Bon Jovi ajudou imensamente a Gabriella com a síndrome do pânico e foi um processo natural. A musicoterapia é uma forma complementar de cuidar de sua saúde, assim como um psicólogo ou psiquiatra.

É importante procurar ajuda profissional, mas a música não será ouvida apenas no consultório — ela será vivida por cada um. São inúmeros os benefícios e funcionalidades da utilização da música. São inúmeras as experiências individuais que ganharam por acaso uma trilha sonora.

Muitas vezes, sentimo-nos perdidos no oceano. Não sabemos para onde ir, aonde queremos chegar. Sabemos somente que não queremos permanecer na imensidão azul, assistindo a luz sumir e a escuridão nos devorar.

A música, tal qual as ondas, nos levam para outro lugar.

Se você quer ser levado pelas ondas também, nós curamos uma playlist para você: As ondas nos levam para outro lugar

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Vanessa Maria Sant'Ana
Salus: Uma ode à prevenção

Jornalista formada pelo Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz (FAG) | @vanessamsantana