“Missing six feet deep” | Arte por Raul Andreo de Paiva

Saudade a sete palmos

Adeptos de diferentes religiões explicam como lidam com o luto

Kelvin Willian
Salus: Uma ode à prevenção
9 min readNov 25, 2020

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Não nascemos preparados para a morte. Pode estar tudo bem, mas de repente ela chega e devasta uma família, rouba os sonhos, leva os planos e projetos que nunca saíram do papel.

Uma casa com festas no final de semana, comemorações em datas especiais, música alta, risos e gritos estridentes das crianças de uma hora para outra dá lugar para uma casa vazia e triste. O som da saudade é ouvido pelos cômodos enquanto um tecido preto é colocado no portão.

A dor do luto é exposta nas redes sociais. Amigos e familiares se unem num só lugar para prestar as últimas homenagens para a pessoa falecida. A noite cai, mas a ficha não caiu ainda em meio a tantas lembranças e sentimentos. Na madrugada silenciosa, ecoa um som dizimador misturado com lágrimas e soluços.

O dia amanhece e o café quente não consegue aquecer o coração da família enlutada. O horário do enterro chega e a dor do adeus começa a pesar.

Chegando ao cemitério, a oportunidade do último adeus se encerra. Os coveiros se empenham em descer o caixão pelo buraco profundo, não mais profundo que a dor de quem fica. E agora fica uma indagação no ar: como superar a morte de um ente querido?

Algumas pessoas desenvolvem um quadro depressivo após a perda. Mas como o ciclo natural da vida tem que acontecer, como lidar com o luto? Buscar a ajuda de um psicólogo ou de uma religião pode ser a resposta.

Tem pessoas que acreditam que rezar para quem se foi é uma alternativa para amenizar a dor. Mas será que seguir as doutrinas de uma religião torna mais fácil lidar com a morte? Como elas ensinam seus fiéis a superar a perda?

Roseli Nunes

Roseli Nunes é evangélica e perdeu a mãe em 2013. Para ela, para superar a morte de um familiar é preciso ter um relacionamento com Deus. “Na época em que perdi minha mãe, eu estava na presença de Deus e foi ele que me deu forças para continuar. O Espírito Santo preenche o vazio que fica no nosso peito e consola nossa alma. Quando Deus é nossa base nós sentimos falta sim de quem se foi, mas Ele não permite que a dor nos consuma pois ele nos abraça e ali encontramos paz”.

Loana Dalgallo

No espiritismo, a morte é encarada como passagem, não como perda. Loana Dalgallo é espírita e considera a morte como uma nova etapa para a evolução do ser. “A morte não existe, apenas passamos para um outro plano onde temos plena consciência e liberdade. É o lugar de acolhimento às almas, onde entendemos qual foi nossa missão aqui na Terra. Por exemplo, se um dos meus filhos morrer, eu vou entender que ele cumpriu seu propósito aqui e com certeza estará num lugar bem melhor e que em breve nos encontraremos e seremos felizes genuinamente. É claro que a saudade do contato físico existe, mas entender que essa alma só encontra paz no desencarne quando se livra das amarras desse corpo é o que nos consola”.

Eliane Bertola

Eliane Bertola é católica apostólica romana do Movimento da Renovação Carismática Católica, em que se trabalha sobre a espiritualidade do Espírito Santo pelo batismo no espírito. Eliane perdeu um sobrinho em julho deste ano e conta que na igreja católica a superação só é possível com orações. “Pela doutrina e ensinamento da igreja, acredito que exista o céu e o inferno, além do purgatório, por isso, rezamos por essas almas para que elas encontrem o céu. É pela oração e pelo batismo no espírito que pedimos forças para suportar a dor de perder um ente querido. Realizamos santas missas em que colocamos tudo no altar do Senhor, e com a reza do santo terço é que pedimos a intercessão de Nossa Senhora para que ela conforte nossos corações”.

Segundo o dicionário, a palavra ateísmo significa: doutrina que nega veementemente a existência de Deus, recusando toda afirmação e/ou sentimento que se baseiam direta ou indiretamente na fé. Geralmente os adeptos do ateísmo buscam explicações materialistas e científicas para questões como a criação do universo e da humanidade.

Mas como um ateu encara o tema luto, já que não existe uma religião em que se apoiar?

Michel de Andrade

Michel de Andrade é ateu e, segundo ele, a morte de um ente querido não se supera com orações nem com palavras confortantes. A superação ocorre quando se compartilha com outras pessoas os momentos vividos com a pessoa que partiu. “Muitos assumem que encarar a morte sem religião torna a vida sem sentido e insuportável, que apenas pessoas estoicas podem suportar o vazio que é a morte sem uma fundação religiosa”.

Para ele, é possível alcançar o conforto e o entendimento perante a morte da mesma maneira que qualquer um. “Quando algum ente querido morre, temos a vantagem de dizer que é injusto, que não deveria morrer, não estamos presos a frases confortantes como ‘Ele está em um lugar melhor agora…’o luto é o mesmo, sentimos a falta e lembramos de quando a pessoa estava por perto, essa é uma parte importante para qualquer um, com religião ou não, lembrar da pessoa que se foi, de suas manias, jeitos de falar, e compartilhar essas memórias com os outros, fazer a pessoa continuar viva em outras pessoas”. Morte e vida andam juntas para Michel, viver o melhor que se pode para que não haja arrependimentos depois é o caminho a ser seguido.

É como se no ateísmo só tivesse um luto, enquanto no teísmo há dois: o luto da morte, da tristeza do que se foi, e o luto da dúvida, da incerteza do lugar melhor, e se algum dia haverá reencontro com aqueles a quem se ama.

Mais resumidamente, o ateísmo não está preso a frases confortantes, está preso à própria vida. Quando a morte chega, não há mais o que fazer a não ser aceitá-la, o corpo se se perde no ciclo da vida, mas a bagagem das memórias fica para sempre. Continuar com essas memórias e compartilhá-las com os outros é o melhor modo de lidar com a perda.

A umbanda é uma religião fundada aqui no Brasil, e não na África, como muitos pensam, é fortemente influenciada por raízes afro-candomblecistas, catolicismo e espiritismo. Na umbanda, são cultuados orixás e guias espirituais.

Mariana de Oxum

Mariana de Oxum é mãe de santo e iniciou seu caminho no candomblé aos sete anos de idade e deu continuidade trabalhando na umbanda pregando os fundamentos, ensinamentos e ajudando espiritualmente quem precisa.

De acordo com Mãe Mariana, o luto na umbanda é visto como um recomeço. E isso faz com que os umbandista superem a morte de uma forma mais serena. “A doutrina umbandista ensina que todos temos um caminho a seguir e uma missão para cumprir assim que encarnamos, como se fosse um ‘liquido da vida’ que cada pessoa recebe na quantidade que precisa e quando ele acaba desencarnamos, conforme o tempo que a espiritualidade superior deu aquele indivíduo. Terminou o tempo, a missão dessa pessoa acabou. Acreditamos em vidas passadas, carmas e reencarnação. E que estamos na Terra para evoluir espiritualmente e nos tornarmos pessoas melhores. A cada vida podemos aprender com nossos erros e recomeçar novamente até que sejamos espíritos evoluídos o suficiente para estar em um plano espiritual superior”.

Os umbandistas acreditam na vida eterna e que a verdadeira condição da existência é a espiritual. Na morte, deixa-se a condição de encarnado e o retorno a essa morada. “Após a morte carnal de algum ente querido, entendemos que ao invés da tristeza devemos emanar energias e vibrações boas para quem partiu”.

Muitos perguntam por que algumas pessoas mesmo sabendo disso choram. “É perfeitamente normal, uma vez que estamos em condição de encarnados e vemos a morte como um rompimento, somos humanos e nem todos tivemos a oportunidade de evoluir ao ponto de entender a partida como um até logo e não um adeus. Com a graça de Oxalá (Jesus), sabemos que iremos nos encontrar novamente”.

Entretanto, para a umbanda, nem todos os espíritos são enviados para o mesmo lugar, tudo depende do merecimento de cada um e das atitudes ao longo da vida. “Se o espírito não conseguiu evoluir, aprender com os erros e não compreender que errou, esse espírito vai para o umbral, uma espécie de purgatório, onde ele fica até entender e se arrepender dos erros que cometeu. Quando há merecimento, não há sofrimento no desencarne. Alguns espíritos reencarnam logo após a morte, alguns também quando já cumpriram sua missão se tornam espíritos evoluídos e vão para planos superiores. Existem linhas de trabalhos com caboclos, baianos, boiadeiros, marinheiros, pretos velhos, pombagiras, exus que já foram pessoas encarnadas e que já cumpriram sua missão e trabalham para continuar evoluindo”.

Em meio às religiões, as formas para superar a morte são diversas.

E como a psicologia explica esse tema?

Auhany Volpato

Auhany Volpato é terapeuta e explica que a morte é um assunto que deve ser tratado com leveza, pois, ao contrário do que muitas pessoas acreditam, é saudável falar sobre a morte e é preciso quebrar esse tabu.

A terapeuta também explica que cada pessoa tem seu tempo na superação do luto. “Cada pessoa vai viver um tempo para resgatar a paz que precisa para seguir a vida. Quando falamos sobre tempo não estamos falando sobre o tempo Chronos, que mede a quantidade de dias, o tempo do luto é Kairós, pois ele designa o momento da pessoa, o momento de cada um”.

Algumas pessoas passam anos, outras alguns meses, mas devemos respeitar, pois cada pessoa precisa passar por esse processo. “Uma das partes mais difíceis do luto é o silêncio. Primeiro, porque você não vai mais ouvir a voz de que você ama. Segundo, é que você não vai se ver mais nos olhos da pessoa que você ama, pois quando você ama alguém e esse alguém te olha você se vê, você se reconhece nos olhos dessa pessoa e entende o quanto você é importante”.

Focar nas memórias boas que se tem da pessoa que partiu é uma das dicas para amenizar a dor do luto. É importante que a pessoa enlutada mantenha a vida dela em movimento de alguma forma, seja trabalhando ou fazendo alguma atividade. Nós precisamos falar e compartilhar nossa dor e cuidar da nossa saúde emocional. “Muitas pessoa acreditam que buscar ajuda psicológica é coisa de maluco, mas é extremamente importante manter a saúde mental. Eu levanto a bandeira de que procurar ajuda não é coisa de maluco”.

Sabemos que perder quem amamos não é fácil independente da religião ou crença. O ciclo nascer, crescer, reproduzir e morrer é natural, porém, não é tão compreensível.

Não sabemos nosso dia nem a nossa hora, por isso devemos viver intensamente cada dia que é nos concedido. E você, como tem vivido? Tem corrido atrás dos seus sonhos ou está deixando para amanhã? Tem abraçado quem você ama?

Roseli Nunes não tem mais como abraçar sua mãe. Ela relata que, depois da partida de sua genitora, a família não se reúne mais como antes e que ela sente que deveria ter feito um pouco mais por ela. “Nós devemos valorizar toda nossa família, mas destaco minha mãe, pois era ela que promovia as festas de fim de ano e datas comemorativas. Ela reunia toda família, preparava a comida, arrumava os lugares para o pessoal dormir, era muito divertido. Já perdi meu pai, meus tios, meus avós, mas nada se compara a perder minha mãe. É inexplicável o valor de uma mãe, eu queria muito que ela estivesse aqui comigo hoje, nem que fosse para levar algumas broncas”.

Por fim, Roseli relembra pontos que podem ser lição para quem ainda não passou pela mesma situação que ela. “Tem muita coisa que eu deixei de falar pra ela, tem muita coisa que eu deixei de agradecer, tem coisas que eu poderia ter feito pra ela e não fiz, mas mesmo assim sei que ela amava a mim e a todos os meus irmãos. No meu íntimo, eu sinto que deixei passar algumas coisas, eu deveria ter elogiado mais vezes quando ela se esforçava para fazer as coisas, hoje eu gostaria de poder voltar nesses momentos e dizer o quanto ela era e é importante pra mim”.

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