A Vida Mentirosa dos Adultos: Qual mentira Elena Ferrante nos conta?

Caroline Holder
salvoconteudo
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7 min readOct 29, 2020

RESENHA E ENTREVISTA

Sobre o lançamento nacional e mundial do novo livro de Elena Ferrante, pseudônimo de autora italiana que vendeu mais 12 milhões de cópias com a tetralogia napolitana.

Milena Vargas, editora, tradutora e mestre em Literatura Italiana, com ênfase em Elena Ferrante, nos leva pelos caminhos de Giovanna, protagonista do lançamento da autora.

A vida mentirosa dos adultos, o novo livro de Elena Ferrante, retoma as principais temáticas da autora — isto é, as relações familiares, a experiência feminina, o (re)encontro com a cidade de Nápoles, a criação de uma identidade a partir de um reflexo do outro, o amadurecimento–, mas agora parte da perspectiva de uma narradora adolescente de classe média.

É Giovanna quem narra, em primeira pessoa, sua experiência dos 13 aos 16 anos, em uma espécie de livro de formação, ou melhor, de libertação feminina: desde o momento em que suas ilusões infantis desmoronam e ela passa a ver o mundo com um olhar desafiador, a partir do qual parece se dividir entre tentar se adequar à imagem que os outros fazem dela e agir mais por si mesma, sem levar tanto em consideração a expectativa do outro, libertar-se.

“Portanto, o que estragava os dias do meu pai eram apenas os instantes vazios nos quais ele se via cara a cara com as suas culpas.”

Sua “libertação” só é possível porque a personagem passa por um percurso de autoconhecimento, de busca pelas próprias origens, no qual finalmente descobre que os fatos não são necessariamente como a família contou, e que ela pode decidir por si mesma o seu espaço de pertencimento. A partir de seu reencontro com as origens, começam a ruir as máscaras dos adultos, e Giovanna precisa decidir se vai participar ou não do mesmo teatro com eles. O palco já está montado para ela.

“Se eu tinha qualidades, eu mesma estava sufocando-as de propósito para não me sentir uma garotinha patética de boa família.”

Tornar-se mulher, nesta história, está diretamente relacionado a uma certa experiência de ser tolhida e de ser obrigada a cumprir o que se espera, mas é principalmente um movimento de abolir essas amarras, errar e acertar seguindo seus próprios termos. Tornar-se mulher, para Giovanna, é se libertar das expectativas dos pais e tentar encontrar seu próprio desejo, o que vai além da experiência romântica e sexual: é a conquista de um novo posicionamento diante da vida.

Entrevistamos a editora e pesquisadora Milena Vargas, que trabalhou na edição de A vida mentirosa dos adultos, publicado pela editora Intrínseca.

1 — Ferrante fala por meio de vozes femininas. Desta vez, a narradora é adolescente. Mas ela também está num processo de autoconhecimento.

Em A vida mentirosa dos adultos, a narradora está apenas começando seu processo formativo como mulher e como indivíduo. A narradora-personagem é bastante jovem, mas as temáticas que ela está colocando em xeque são as mesmas do mundo adulto, no qual ela hesita em se inserir.

O que causa a ruptura e motiva o processo de reconstrução da Giovanna é uma fala do pai, que a compara a uma tia que ela não conhece, a tia Vittoria, de quem ela só escutou as coisas mais terríveis. Essa tia, para ela, era uma espécie de bruxa, um símbolo de tudo o que é feio e ruim. Então, ser comparada à tia Vittoria abala todos os alicerces da Giovanna em relação à vida que ela tinha construído com a família, uma experiência infantil, bastante protegida, sólida, e constituída sobre as ilusões e as fantasias que rodeiam esse universo da criança.

Nesse livro, a Ferrante está retratando uma passagem um pouco abrupta da infância para a adolescência, a partir de um encontro bastante duro com o real, que é a derrocada de todas as fantasias. É a partir dessa comparação que a personagem vai começar uma busca das próprias origens, vai querer conhecer quem é essa tia com quem ela se parece, descobrir para si uma verdade a respeito dessa tia diferente da verdade dos pais. E também vai criar uma opinião própria a respeito do passado dos pais, que é também o passado dela.

Fala um pouquinho pra gente sobre a experiência feminina da mulher trazida pela Ferrante?

A condição da mulher é um tema que, no universo da Ferrante, atravessa todas as narrativas. Isso porque todas as obras são narradas em primeira pessoa por narradoras mulheres, de forma que é a visão delas a ser passada ao leitor, o ponto de vista delas, e aos protagonistas masculinos não é dada a possibilidade de contar a história, a voz deles está sempre entremeada à delas.

Apesar de inegavelmente haver essa temática constante nas obras de Ferrante, os livros são todos bastante diferentes entre si, cada um deles foca mais um ponto específico dessa experiência da mulher. Nós temos uma narradora que lida com a morte da mãe em Amor incômodo, uma mulher que precisa lidar com o abandono do marido em Dias de abandono, uma mulher lidando com a solidão da meia-idade enquanto tira férias na praia em A filha perdida, por exemplo. Na tetralogia, a narrativa parte da ideia de resgatar de alguma forma uma amiga desaparecida.

Todas essas mulheres, essas narradoras, estão partindo de um ponto de ruptura, catando seus fragmentos, eu diria, para se reconstruírem a partir deles. No Frantumaglia, um livro de ensaios que eu sempre cito e recomendo para os fãs da obra literária da Ferrante, ela diz que prioriza falar dessas mulheres que estão sempre vigilantes com relação a si mesmas, dispostas a essa reconstrução. O objeto de interesse da Ferrante, justamente, é esse ponto de trauma, de desassossego, e o que essa mulher que narra faz com esses frangalhos.

2 — Esta passagem que você citou sobre o pai, que chama Giovanna de feia, me lembrou Emma Bovary julgando a filha. Este romance permeia a literatura desde Dostoievski, quando Madame Bovary é o livro de cabeceira de Nastácia Filíppovna, até agora nesta inspiração mais sutil. Quais são as camadas femininas do livro?

A Ferrante escreve obras cheias de referências literárias. É um texto culturalmente muito rico, e cada referência não é colocada ali ingenuamente. É um projeto de intertextualidade. E, de fato, ela é muito bem-sucedida no que se refere a refletir sobre a experiência do feminino.

Em A vida mentirosa dos adultos, tornar-se mulher está diretamente relacionado a uma certa experiência de ser tolhida e de ser obrigada a cumprir o que se espera dela, mas é principalmente um movimento de abolir essas amarras, errar e acertar seguindo seus próprios termos. Tornar-se mulher, para a Giovanna, é se libertar das expectativas dos pais e tentar encontrar seu próprio desejo, descobrir para si mesma uma nova identidade.

3 — Que mentiras Ferrante nos conta, qual a importância de tirar essas máscaras e vendas?

A principal mentira que Ferrante nos conta é biográfica. No Frantumaglia, ela brinca bastante contando histórias de sua infância que provavelmente nunca aconteceram, o que subverte qualquer tipo de pacto que ela algum dia possa firmar com seus leitores.

No caso do novo livro, Ferrante nos mostra que as mentiras dos adultos estão por toda parte. Que crescer é perceber que os adultos são crianças grandes que não têm todas as certezas que afirmam ter nem todo o conhecimento que garantem possuir. Na verdade, sabemos que a experiência do ser humano no mundo é, desde o nascimento, baseada em tentativa e erro, e, por mais que busquemos nos apropriar das experiências dos mais velhos e dos nossos antepassados, é impossível viver uma vida inteira sem cometer erros.

O processo de amadurecimento de Giovanna, então, segue um curso bastante natural, que é concluir que os pais não têm todas as respostas e buscar alguma compreensão de si mesma, experimentar o mundo sem a chancela das opiniões dos pais. Isso, no caso de Giovanna, é despertado pelo comentário do pai sobre ela ser a cara da tia, mas acaba por levar a personagem em uma busca sobre as próprias origens.

Nesse percurso, ela descobre que as coisas não são necessariamente como o pai contou, e que ela pode decidir por si mesma o seu espaço de pertencimento.

4 — Como esta obra se conecta aos outros livros?

A Ferrante é uma autora que de certa forma está sempre olhando para as mesmas temáticas de vários ângulos diferentes. No livro novo, ela traz um novo ângulo sobre a questão da experiência na cidade, fala de relações familiares, da experiência do feminino, de amadurecimento. Sobretudo, nós temos neste livro todo o talento narrativo de Ferrante, que volta a publicar um romance curto depois da série de quatro livros que a consagrou, a série Napolitana.

Para ter uma visão mais ampla do significado dessas temáticas para a autora, vale muito a pena ler também o Frantumaglia, que é quase a construção de uma teoria a respeito de si mesma.

Me chamo Caroline Holder, sou jornalista, editora de Política e Economia na GloboNews. Apaixonada por letras, livros, palavras e podcasts. Co-criadora da @salvoconteudo.

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Jornalista, editora de Política e Economia na GloboNews. Apaixonada por letras, livros, palavras e podcasts. co-criadora da @salvoconteudo.