TOLSTÓI, ENTRE GUERRA E PAZ

por Claudine M. D. Duarte*

Claudine M. D. Duarte
salvoconteudo
10 min readDec 30, 2020

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Das festas da nobreza russa em São Petersburgo aos horrores da guerra e desgaste emocional de seus combatentes

A verdade não penetra num entendimento rebelde.

Jorge Luis Borges, O Aleph (1949)[1]

Meu neto, Heitor, tem quinze anos e se interessa por História, guerras e geopolítica. No final de 2019, mergulhei em livros sobre os Romanovs na tentativa (vã) de entabular uma conversa decente sobre império russo e as transformações que aquela parte do mundo sofreu ao longo do tempo. A releitura de Guerra e Paz, de Tolstói, foi consequência direta desse estudo e, talvez seja desnecessário acrescentar, a quarentena, exigida pela pandemia, me conferiu solidão e tempo para ler (e reler) alguns “tijolões”.

“Tijolão” é um livro grande em número de páginas; romances longos que nem sempre são grandes romances. A quantidade de páginas não é uma prova de qualidade, mas assusta e impressiona. Uma vez, durante um encontro em Paraty, na FLIP, o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro brincou que fez do seu Viva o Povo Brasileiro (1984) um grande romance porque ouviu de seu editor que os brasileiros somente escreviam livros finos para serem lidos durante uma viagem de avião:

“Quis fazer um romance bem extenso, caprichado e grosso. Escrevi para esfregar na cara dele. Coisa que efetivamente fiz”.[2]

Não sei quanto tempo durou a produção do livro de João Ubaldo, mas Liev Tolstói dedicou cinco anos de sua vida para escrever Guerra e Paz, lançado em 1869, após extensa pesquisa sobre documentos, biografias e relatos históricos. Segundo Vladimir Nabokov,

“Tolstói é o maior prosador russo. Deixando de lado seus precursores Púchkin e Liérmontov, podemos relacionar os maiores autores russos em prosa da seguinte forma: primeiro Tolstói; segundo, Gógol; terceiro, Tchekhov; quarto, Turguêniev. Quando alguém lê Turguêniev, sabe que está lendo Turguêniev. Quando lê Tolstói, lê simplesmente porque não pode parar”.[3]

É impossível discordar. Fiz a releitura das quase mil e quinhentas páginas em menos de um mês, carregando com cuidado pela casa os dois volumes de Guerra e Paz na caprichada tradução do Rubens Figueiredo. Isso é um presente para nós, leitores brasileiros: o acesso a traduções diretamente do russo.

A memória nos engana, a minha me prega peças, inofensivas às vezes. No caso do livro, eu tinha guardado o sabor da odisseia do general Kutúzov, como representante de todo o povo russo em sua luta contra Napoleão. Sabia que o inverno era um aliado nessa epopeia para, junto com a fome, arruinar os invasores. Sim, eu me lembrava daquele herói épico que, junto a outros dois personagens também acompanhados de perto pelo narrador, compunha uma história que honrava a defesa da soberania pelos russos em seu combate aos avanços imperialistas das tropas francesas.

O próprio Tolstói alerta sobre o meu equívoco. Em 1868,[4] o escritor afirma que Guerra e Paz “não é um romance, muito menos uma epopeia, muito menos ainda uma crônica histórica. Guerra e Paz é aquilo que o autor quis e conseguiu expressar, na forma em que a obra foi expressa.” A leitura, como a vida, fica melhor se degustada em camadas. Podemos escolher olhar para Guerra e Paz como um libelo contra a estupidez dos donos do poder; podemos seguir a trilha indicada por Tolstói sobre o caráter fatídico dos conflitos sangrentos nas relações humanas e, ainda, podemos ler como um tratado filosófico, profundamente humanista.

No início, o escritor nos conduz pelas festas da nobreza russa em São Petersburgo, com muitos diálogos em francês — o que demonstra que a invasão francesa já havia se instalado pelo uso da linguagem. Naqueles salões, somos apresentados a Pierre, filho bastardo e herdeiro do Conde Bezúkhov e, confirmando um estranhamento cultural, Tolstói lhe confere a versão francesa do nome Piotr. Acompanhamos, deslumbrados, o arco de transformação de Pierre e suas reflexões interiores até o final do romance. Um dos pontos altos da obra é o encontro de Pierre, na prisão, com o soldado Platon Karatáiev, que lhe descortina uma visão de mundo simples e autêntica e abre espaço para que Tolstói defenda sua ideologia de busca da verdade e dos vários desdobramentos e significados para a paz.

“Adorava falar e falava bem, enfeitando seu discurso com expressões afetivas e provérbios que, para Pierre, pareciam inventados pelo próprio Platon; mas o principal encanto de seus relatos residia em que, neles, as ações eram as mais simples possíveis, às vezes as mesmas coisas que Pierre via normalmente sem prestar atenção ganhavam o caráter solene de coisas veneráveis. Platon adorava escutar as lendas que um soldado contava à noite (sempre as mesmas), porém acima de tudo gostava de escutar histórias da vida real. Sorria com alegria ao ouvir tais histórias, interrompia e fazia perguntas destinadas a esclarecer para si mesmo o que havia de importante naquilo que lhe contavam. Afeições, amizades, amores, tal como Pierre os entendia, Karatáiev não tinha nada disso; mas amava e vivia amorosamente com tudo aquilo que a vida punha em seu caminho, em especial com as pessoas — não as pessoas já conhecidas, mas aquelas que por acaso estivessem na frente de seus olhos.”

Tolstói usa seu talento para nos demonstrar os horrores da guerra, entrelaçando os momentos de batalhas com a dimensão emocional dos personagens, sem medo de denunciar a mesquinhez e a vaidade humanas que fomentam tragédias estúpidas e criminosas. O autor usa com maestria o recurso de um narrador onisciente, seguro, cuidadoso com o tempo de cada personagem e com o ritmo da narrativa. Conseguimos ver o céu pelos olhos do príncipe Andrei:

“O que é isso? Estou caindo? Minhas pernas estão fraquejando”, pensou, e caiu de costas. Abriu bem os olhos, na esperança de ver como tinha terminado a luta dos franceses contra o artilheiro e querendo saber se o artilheiro ruivo tinha sido morto ou não e se os canhões foram tomados ou salvos. Porém não viu nada. Acima dele, já não havia nada, senão o céu — um céu alto, não claro, mesmo assim incomensuravelmente alto, com nuvens cinzentas que deslizavam tranquilas. “Como está tranquilo, calmo e solene, muito diferente de quando eu corria”, pensou o príncipe Andrei. “Muito diferente de quando nós corríamos, gritávamos, lutávamos; completamente diferente da maneira como o francês e o artilheiro, com rostos assustados e raivosos, puxavam a vareta de limpeza do canhão um de cada lado… é de um modo completamente diferente que as nuvens deslizam por esse céu alto e infinito. Como é que antes eu não via esse céu alto? E como estou feliz, eu, que afinal descobri esse céu. Sim! Tudo é vazio, tudo é ilusão, exceto o céu infinito. Nada existe, nada, exceto ele. Mas nem isso existe, nada existe, exceto o silêncio, a tranquilidade. Graças a Deus!…”

A leitura de Guerra e Paz nos possibilita acessar temas profundos e recorrentes, como a passagem do tempo, a finitude humana e a perplexidade perante a violência da guerra. As reflexões dos personagens não se perdem no campo da abstração, têm concretude nas imagens descritas pelo autor, bem como nos diálogos ou pensamentos. Ao penetrar na mente desses personagens, muitas vezes me vieram à lembrança outros livros cujos personagens compartilham do mesmo horror a batalhas inúteis, tais como O emblema vermelho da coragem (1895), de Stephen Crane, e o imperdível Adeus às armas (1929), de Hemingway. Na obra de Tolstói, o jovem Nikolai Rostóv deixa a universidade para se alistar no Exército e, em determinado ponto, se pergunta sobre a realidade da batalha:

“Quem são eles? Por que estão aqui? O que querem? E quando tudo vai terminar?”, pensava Rostóv, enquanto olhava para as sombras que se moviam à sua frente. A dor na mão se tornava cada vez mais torturante. O sono o dominava de forma irresistível, círculos vermelhos palpitavam em seus olhos, e a impressão daquelas vozes e daqueles rostos e o sentimento de solidão fundiam-se com a sensação de dor. Eram eles, aqueles soldados, os feridos e também os sem ferimento, eram eles que oprimiam, pesavam, sugavam as energias, queimavam a carne no seu braço quebrado e no seu ombro. A fim de se livrar deles, fechou os olhos.

(…)

Rostóv abriu os olhos e olhou para cima. A cortina negra da noite pendia um archin acima da luz dos carvões. Nessa luz, voavam grãos da neve que caía. Túchin não voltava, o médico não chegava. Rostóv estava só, agora apenas um soldadinho qualquer estava sentado e despido do outro lado do fogo e aquecia seu corpo magro e amarelo.

“Ninguém precisa de mim!”, pensou Rostóv. “Ninguém vem me ajudar, ninguém tem pena. Quem dera eu estivesse em casa, como antes, forte, alegre, amado.”

O autor usa sua escrita para repisar perguntas incômodas, tais como: o que dá início a “um acontecimento contrário à razão e a toda a natureza humana?e por que isso acontece.

Milhões de pessoas praticaram, umas contra as outras, uma quantidade tão inumerável de crimes, embustes, traições, roubos, fraudes, falsificações de dinheiro, pilhagens, incêndios e assassinatos, como não se encontra nos autos de todos os tribunais do mundo em séculos inteiros, e, naquele período, as pessoas que agiam assim não consideravam que nada disso fosse um crime. O que produziu tal acontecimento extraordinário? Quais foram suas causas?”

Conclui que, mesmo que sejam feitas tentativas para explicar racionalmente os fenômenos na história, os fatos e os acontecimentos serão sempre “irracionais e incompreensíveis”, quando não simplesmente risíveis. No livro, o olhar do autor trata com ironia algumas escolhas de Napoleão, o que nos divertiu muito — a mim e a meu neto:

“Mesmo que os estrategistas mais doutos tivessem suposto que o objetivo de Napoleão era destruir seu próprio exército, não conseguiriam imaginar outra linha de ação que, com tamanha certeza e com tamanha independência de tudo aquilo que as tropas russas pudessem empreender, destruísse o exército francês tão completamente como aquilo que Napoleão fez. (…) Tal como antes, e como depois, no ano de 1813, ele empregou toda a sua inteligência e toda a sua energia a fim de fazer o melhor para si e para seu exército. A ação de Napoleão durante aquele tempo não foi menos formidável do que no Egito, na Itália, na Áustria e na Prússia. Não sabemos ao certo qual o grau da genialidade real de Napoleão no Egito, onde quarenta séculos contemplaram sua grandeza[5], porque todas aquelas façanhas grandiosas nos são descritas apenas por franceses.”

E se terminamos a leitura de Guerra e Paz do lado dos russos, isto, certamente, se deve à figura do general Kutúzov e à efetividade de suas decisões. O escritor promove a reabilitação de um herói digno, que direcionou suas ações para enfrentar os franceses e expulsá-los da Rússia, com o lema “paciência e tempo”. Sobre Kutúzov, afirma:

“Mas de que forma, na época, aquele velho, sozinho, em contradição com a opinião de todos, pôde deduzir, e deduzir de modo tão seguro, o sentido da percepção popular dos acontecimentos e nem uma vez em todas as suas ações o trair?

(…)

Essa figura simples, humilde e por isso verdadeiramente grande não podia se adaptar à forma mentirosa do herói europeu, que supostamente comanda as pessoas e que a história inventou. Para um criado, não pode existir um grande homem, porque um criado tem sua própria ideia da grandeza.”

Um dos grandes feitos do conde Liev Nikolaievitch Tolstói (1828–1910) foi de não ter medo de expor as profundezas e conflitos da vida humana, contrapondo imaginação e fatos. O escritor participou, como tenente da artilharia, da Guerra da Crimeia (1853–1856) e muitos dos episódios das batalhas descritos com maestria em Guerra e Paz vieram de cenas de seus Contos de Sebastopol, escritos entre 1855 e 1856.

Em Guerra e Paz encontramos o retrato de um povo e sua época; Tolstói nos oferece uma profusão de personagens que abrangem toda a sociedade russa, com suas diversas classes sociais: nobres, militares, servos, camponeses, e ainda religiosos, artistas e místicos. Mesmo as histórias de amores, traições, duelos, interesses e decepções estão presentes e nos fazem suspirar pela paixão silenciosa de Pierre por Natacha, relação essa que atravessa todo o livro. Quer saber se ficam juntos?! Encare o livro. Só conto um detalhe extra: dizem que Tolstói escreveu um final alternativo, em que Pierre vai preso novamente. Dessa vez, na Sibéria, para onde foram conduzidos os dezembristas, entre eles, Sergei Volkonski, um primo de Tolstói, inspiração para sua obra literária. Seu Guerra e Paz é memorável: pela trama, pela razão que moveu sua escrita e pelo amor à verdade. No epílogo[6] (um dos maiores que já li em qualquer tempo) uma pequena ‘grande’ fala de Pierre Bezúkhov:

“ — Eu só queria dizer que todas as ideias que têm consequências enormes são sempre simples. Toda a minha ideia se resume em que, se as pessoas sórdidas estão unidas e constituem uma força, as pessoas honradas precisam fazer o mesmo. Veja como é simples.”

A história e o romance contam que, apesar de toda a vilania, ainda é possível que a humanidade deixe para trás a sua pior face, como n’A Peste, de Camus, “há nos homens mais coisas a admirar que a desprezar”[7]. E é por essa e outras que tenho paixão pela literatura: a leitura de obras como Guerra e Paz, grande e grandiosa, nos conduz pela maravilha que pode ser a aventura humana, pela nossa liberdade de fazermos as escolhas que merecem ser vividas — e lidas.

Heitor inseriu Guerra e Paz em sua lista de leitura.

[1] BORGES, Jorge Luis. O Aleph (1949). Tradução: Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[2] http://g1.globo.com/flip/2011/noticia/2011/07/nao-sou-otimista-quanto-humanidade-diz-joao-ubaldo-ribeiro.html

[3] NABOKOV, Vladimir. Lições de Literatura Russa. Tradução: Jorio Dauster. São Paulo: Três Estrelas, 2014.

[4] TOLSTÓI, Liev. “Algumas palavras sobre o livro Guerra e Paz”. Russki Arkhiv, 1868.

[5] Expressão atribuída a Napoleão, em sua campanha no Egito.

[6] TOLSTÓI, Liev. Guerra e Paz. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

[7] CAMUS, Albert; tradução de Valerie Rumjanek. — Rio de Janeiro: Record, 2017.

*Claudine M. D. Duarte, nascida em Anápolis, é arquiteta de formação e hoje, escritora e dramaturga. Adaptou e dirigiu as peças Uma Criatura Dócil, de Fiódor Dostoiévski, e O Legado de Eszter, do húngaro Sándor Márai. Leitora voraz, publicou seus livros de minicontos, Desencontos (2018) e Sete Pequenos Tumultos (2020), pelo Coletivo Editorial Maria Cobogó, do qual é uma das fundadoras. Vive em Brasília e coordena o projeto Calangos Leitores, um dos finalistas do Prêmio Jabuti (2018).

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