Pequeno guia de literatura russa

César Marins
salvoconteudo
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5 min readDec 18, 2020

Por onde começar?

A literatura russa é vasta e múltipla, repleta de autoras e autores e as eternas dúvidas de por qual obra começar, sempre tendo em mente que uma entrada errada por uma literatura pode significar uma antipatia secular. Por isso, criamos um guia de iniciação na literatura russa, que inclui também edições e traduções específicas de cada obra para evitar cilada.

Quem quer ler literatura russa quer o quê? Dostoiévski!

A regra é clara, quem quer ler literatura russa (geralmente) quer Dostoiévski (1821–1881). Assim, nossa sugestão é Um Jogador (1867), uma novela da sua fase pós-Sibéria que é construída no mesmo modelo dos seus grandes romances tardios, ou seja, muitos personagens e “densos” questionamentos existenciais sem ter de encarar as 700 páginas de Crime e castigo de primeira: a tradução de Um jogador de Boris Schnaiderman, publicada pela Editora 34, tem 232 páginas, e também existe uma boa edição da Penguin-Cia com tradução de Rubens Figueiredo.

Entre Guerra e paz e Anna Kariênina?

Óbvio que o nome seguinte seria Tolstói (1928–1910): suas novelas são algumas das melhores coisas da literatura russa. São quatro novelas, especificamente: Felicidade conjugal (1859), A morte de Ivan Ilitch (1886), A Sonata a Kreutzer (1891) e Khadji-Murát (publicado postumamente em 1912). As novelas apresentam um Tolstói contido, conciso, que consegue comunicar sua filosofia de maneira pouco explícita, através de exemplos mimetizados na própria matéria literária. As quatro novelas também foram traduzidas por Boris Schnaiderman e publicadas separadamente pela Editora 34. Existe uma boa edição da Todavia com tradução de Rubens Figueiredo, chamada “Novelas completas”, mas que infelizmente exclui Khadji-Murát. Se você gostar das novelas, recomendamos Anna Kariênina, em tradução de Rubens pela Cia. das Letras.

Quais os melhores contos de Tchékhov?

Fechando a trinca dos mais conhecidos do século XIX, chegamos em um autor sem erros: Tchékhov (1860–1904). Contista e dramaturgo, dele recomendamos seus contos, que vão na direção oposta do confessionalismo moral de Tolstói ou Dostoiévski. Seus melhores contos estão compilados em A dama do cachorrinho e outros contos, em tradução de Boris Schnaiderman, publicado pela Editora 34. Os contos de Tchékhov, “sem trama e sem final”, muitas vezes são quadros da vida, sem um grande desfecho.

Turguêniev e a Rússia de 1860

Ivan Turguêniev (1818–1883) é muitas vezes tido como um dos mais franceses dos autores russos, muito injustamente, diga-se. Membro da intelligentsia russa (leia-se progressista), Turguêniev é autor de Pais e filhos (1862), obra que faz um retrato dos jovens niilistas russos, um dos muitos movimentos políticos que assustaram as elites russas no século XIX, ao qual a revolução de 1917 deve algumas coisas. Além das qualidades próprias do livro, ele também é essencial para entender os debates que aconteciam na Rússia do período, e pavimentar o caminho para leituras mais densas — Os demônios, de Dostoiévski, pode ser visto como uma das reações ao livro de Turguêniev. No Brasil Pais e filhos foi publicado pela Cosac & Naify com diversos textos adicionais e tradução de Rubens Figueiredo, esta mesma edição foi relançada pela Cia. das Letras.

“Todos saímos do Capote de Gógol”

A conhecida frase acima é de Dostoiévski, o que já dispara um alerta de interesse. Nikolai Gógol (1809–1852) é um dos autores russos mais conhecidos da primeira metade do século XIX, e O Capote (1842), é um de seus contos de cunho social mais famosos, não à toa O Duplo de Dostoiévski é sempre comparado com ele. O conto (na Rússia as divisões de formas literárias são diferentes, então o que pra eles é um “povest” pode ser uma novela ou um conto para nós) é um ótimo exemplo da literatura que formou os autores mais conhecidos, e foi publicado pela Editora 34 em O capote e outras histórias, com tradução de Paulo Bezerra.

Simpathy for the devil

O primeiro romance da lista é também um salto até o século XX, já na União Soviética: O mestre e a margarida, de Bulgákov (1891–1940), o livro mais lido na Rússia que, com prosa moderna e bem humorada apresenta a chegada do diabo com sua comitiva em Moscou. Escrito no regime stalinista entre os anos de 1928 e 1940, publicado com censuras em 1967, e finalmente publicado em 1973 na íntegra, e é sem dúvidas um dos maiores romances do século XX. Temos duas traduções recomendadas: a da Editora 34, de Irineu Franco Perpetuo, e a da Alfaguara-Cia de Zoia Prestes. Ah, e uma última nota sobre o título: a obra inspirou a música dos Stones do nosso subtítulo.

Mais poesia, por favor

Agora dois títulos básicos que se completam: as antologias de poesia traduzidas por Boris Schnaiderman e Haroldo e Augusto de Campos e publicadas pela Editora Perspectiva. São elas Maiakóvski e Poesia russa moderna. A primeira nos apresenta Vladimir Maiakóvski, figura central do futurismo soviético, com textos dos tradutores que auxiliam bastante os leitores iniciantes; a segunda apresenta autoras e autores, em geral contemporâneos de Maiakóvski, que merecem volumes só seus no Brasil, mas que com o baixo interesse em publicações de poesia, tendem a ficar no zero.

Tarkóvski e sci-fi

Ao falarmos de cinema russo logo nos vem à mente Andrei Tarkóvski, um dos maiores cineastas russos junto com Eisenstein e Sokurov, para ficar em nomes muito conhecidos fora da Rússia. Seu filme mais famoso, Stalker, é uma adaptação de um romance sci-fi dos irmãos Arkadi e Boris Strugatski, chamado Piquenique na estrada. Ao lermos o livro, fica a impressão de que muito pouco do livro virou filme, mas a obra ainda para em pé por conta própria. Ele foi publicado pela editora Aleph, em tradução de Tatiana Larkina.

O horror e o fim da União Soviética

Dando conta do que podemos chamar de ciclo soviético na nossa lista, sugerimos Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch (1948). Aqui, como em suas outras obras, a jornalista bielorrussa dá voz às diversas testemunhas de um dos incidentes que ajudaram a acelerar o fim da União Soviética. Livro com alta carga emocional, auxilia também a compreender um pouco o raciocínio do povo eslavo. A obra de Svetlana é publicada no Brasil pela Cia. das Letras, e Tchernóbil foi traduzido por Sônia Branco. Apesar dos problemas com créditos, muitas coisas da série da HBO sobre o incidente saíram do livro, então vale a dobradinha livro-série. Escrevi um pouco sobre a obra lá no meu Medium.

Mais contemporâneas também, por gentileza

Ficcionistas contemporâneas Indicamos Gógol, mas o Gógol de cunho social, deixando à parte seu lado mais conhecido: o cômico e o grotesco. Podemos dizer que esta é uma das linhas mestras da literatura russa, estando em Almas mortas e O nariz, de Gógol, assim como na obra de Bulgákov, e está em Liudmila Petruchévskaia (1938), uma das poucas autoras russas contemporâneas publicadas no Brasil (direitos de publicação são caros!). Dela, recomendamos Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha, onde a autora reúne contos de fadas grotescos, uma prosa bem moderna mas que ao mesmo tempo está ligada ao cânone russo. Publicado pela Cia. das Letras com tradução de Cecília Rosas.

César Marins é professor de literatura, mestrando em Teoria Literária na USP e coordena o projeto Literatura Russa desde 2009.

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