Sobre os Ossos dos Mortos: a morte em seus diferentes aspectos

Nastacha de Avila
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6 min readOct 16, 2020

Romance da polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de 2018. Publicado pela Todavia, 253 páginas.

Sobre os ossos dos mortos

“Se tivesse examinado nas Efemérides o que acontecia no céu naquela noite,
nem me deitaria para dormir. Entretanto, caí num sono muito profundo; recorri ao chá de lúpulo e tomei ainda dois comprimidos de valeriana. Por isso, quando fui acordada no meio da noite pelo som — violento, excessivo, e por isso agourento — de alguém batendo na minha porta, não consegui me recompor. Levantei às pressas e fiquei em pé junto da cama, vacilando, pois o corpo sonolento, trêmulo, não conseguia dar o salto da inocência do sono para a vigília. (…)

A neve rangeu e apareceu no meu campo de visão o vizinho que costumo chamar de Esquisito. (…)

— Vista-se, por favor. Pé Grande morreu.
Por um instante perdi a fala e, em silêncio, calcei as botas de cano alto e vesti
o primeiro casaco de frio que encontrei no cabideiro.”

Ao ler o trecho acima, que abre o primeiro capítulo de Sobre os Ossos dos Mortos, escrito por Olga Tokarczuk (vencedora do Prêmio Nobel de 2018), fiquei preocupada de ter sugerido ao clube de leitura da salvo um thriller com fantasia, estilos que não costumo ler. Não há nada de fantástico na narrativa, mas de fato há um certo clima de suspense com belíssimas pitadas humor. Entretanto, a obra vai muito além disso: é absolutamente recheada de elementos para reflexão.

A original Janina Dusheiko

O livro é narrado pela solitária Janina Dusheiko, uma senhora de idade que vive em uma região inóspita da Polônia, onde o inverno é muito rigoroso. Ela toma conta das casas das pessoas que moram em outras cidades durante a temporada mais fria, dá aulas de inglês em uma escola próxima e possui como hobby traduzir poemas de William Blake, em parceria com um de seus poucos amigos próximos, Dísio.

Até então pontos que não a tornam necessariamente especial. Indo um pouco mais a fundo podemos citar duas características importantes:

  1. Ela é uma apaixonada por astrologia: acredita que o universo exerce influência em nosso estado de humor. Crê que tudo está conectado, sob uma ampla perspectiva. Tanto que, por exemplo, ao descobrir que seu vizinho Pé Grande havia morrido, Janina busca insistentemente encontrar seus documentos, de forma a poder desenhar seu mapa astral e entender se a sua morte estava de alguma forma anunciada.
    “É preciso manter os olhos e ouvidos abertos, associar os fatos, enxergar a semelhança lá onde outros veem uma completa discrepância, lembrar que certos acontecimentos ocorrem em vários níveis ou, em outras palavras: muitos incidentes são aspectos do mesmo acontecimento. E que o mundo é uma grande rede, é um todo único, e não existe nada que esteja isolado.
    Cada fragmento do mundo, até o menor deles, está interligado com os outros
    através de um complexo cosmos de correspondências, onde uma mente
    simplória dificilmente penetra.”;
  2. Ela é vegetariana, o que faz com que se revolte com as atividades de caça dos vizinhos.
    “— O ser humano tem uma grande responsabilidade com os animais
    selvagens — ajudá-los a sobreviver — , e, quanto aos domesticados, retribuir seu amor e carinho, pois eles nos dão muito mais do que recebem. É preciso que eles vivam sua vida dignamente, acertem suas contas e registrem seu semestre no histórico cármico — fui um animal, vivi e me alimentei; pastei em campos verdejantes, pari a cria, a aqueci com meu próprio corpo; construí ninhos, cumpri meu papel. Quando você os mata, e eles morrem sentindo medo e terror (…) A responsabilidade do ser humano com os animais é guiá-los — nas sucessivas vidas — à libertação. Estamos todos viajando na mesma direção, da dependência à liberdade, do ritual ao livre arbítrio.”

Para alguns, as duas características acima podem até soar “irritantes” partindo da ótica de leitores que não acreditam em astrologia e/ou criticam o vegetarianismo.

Neste ponto é necessária a capacidade de entender que estamos lidando com uma pessoa intelectualizada, original, que elucida absurdos que acontecem em nossa sociedade e possui uma visão psicanalítica das pessoas, ultrapassando a camada de possíveis estereótipos.

Um dos fatos que elucida sua singularidade é dar nome para as pessoas de acordo com suas impressões sobre elas.

“Que falta de imaginação ter nomes e sobrenomes oficiais. Ninguém jamais se
lembra deles, pois são tão banais e alheios à pessoa que não possuem nenhuma ligação com ela. Além disso, todas as gerações têm as suas modas e, de repente, todos se chamam Margarida, Patrício ou — Deus me livre — Janina. Por isso procuro sempre evitar o uso de nomes e sobrenomes. Em vez disso, prefiro adotar denominações que surgem espontaneamente na cabeça quando olho para alguém pela primeira vez. Estou convencida de que essa é a maneira mais adequada de usar a linguagem, em vez de trocar palavras desprovidas de qualquer significado.”

Por isso os apelidos Esquisito, Pé Grande, Boas Novas, Capa Negra, entre tantos outros (confesso que, intimamente, tenho o mesmo costume, por isso ri bastante com quase todos os nomes). A visão de mundo de Janina é absolutamente própria, ela é dotada de uma capacidade de perceber as pessoas por trás de suas máscaras. Seu humor é requintado (nesse sentido, me lembrou até a protagonista de A elegância do ouriço): em determinado momento do livro, ela é parada pela polícia em seu carro, apelidado de Samurai, resultando no seguinte diálogo:

“ — Quem é Samurai? — o policial perguntou.
— Um amigo — respondi de acordo com a verdade.
— Informe o sobrenome, por favor.
— Samurai Suzuki.”

A autora deixa claro que o leitor não está lidando com uma pessoa comum.

Sobre os ossos dos mortos

“A morte de alguém conhecido tira a autoconfiança de qualquer pessoa.”

O tema que ronda este pequeno romance em vários sentidos é a morte: como no trecho que abre essa resenha, uma série de assassinatos misteriosos acontece nesta região inóspita; há uma crítica ferrenha à caça, ou seja, à morte dos animais; e, por fim, assistimos a uma protagonista que tem consciência de que, como alguém de idade, está próxima do seu próprio fim.

Mas se engana quem, como eu, começa a ler o livro como um thriller, os falecimentos que acontecem são até, de certa forma, secundários, ou podem ser vistos como um recurso para a protagonista ir expondo suas ideias sobre a caça, sobre religião, sobre loucura, sobre o que significa envelhecer no corpo de uma mulher.

O que dá ao homem o direito de caçar?

Uma das interpretações do título poderia ser sobre [no sentido de “a respeito de”] os ossos dos mortos. Sob a perspectiva de Janina, a série de mortes é uma vingança dos animais por conta da caça recorrente na região.

Ela não só denuncia à polícia sua ousada teoria, como escreve recorrentemente cartas para alertá-los dos pontos que considera absurdos.

“as pessoas são capazes de entender apenas aquilo que inventam para si mesmas e é com isso que se alimentam. (…). Nem os jornais, nem a televisão estão interessados nos animais, a não ser que um tigre escape do zoológico.”

Entretanto, todos a tratam como louca e a ignoram veementemente. O que acaba gerando uma das melhores reflexões que li neste livro:

“Um cidadão ignorado pelas repartições públicas está condenado, de alguma forma, à inexistência. Porém, é preciso lembrar que quem não possui direitos, tampouco tem obrigações.”

Por que mulheres, sobretudo de idade, têm menos voz?

Mesmo nos momentos em que Janina não está calorosamente se posicionando em relação a suas convicções, e em que é sumariamente ignorada pelas autoridades, há diversos trechos no livro que demonstram o quanto fica cada vez mais difícil ser mulher na medida em que se envelhece.

“Quando chegamos a uma certa idade, precisamos entender que as pessoas
sempre ficarão irritadas conosco. Antes, nunca tinha percebido a existência ou o significado de gestos como acenar com a cabeça rapidamente, desviar o olhar, repetir “sim, sim”, feito um relógio. Ou checar as horas, ou esfregar o nariz. Mas agora entendo muito bem que esse teatro todo só quer expressar uma simples frase: “Dá um tempo, sua velha”. Às vezes fico pensando se um jovem bonitão ou uma morena curvilínea seriam tratados da mesma forma se dissessem as mesmas coisas que eu.”

E este argumento em especial (atenção: o texto a seguir pode ser considerado spoiler 👀) é provado pela autora para alguns leitores que vão acompanhando a história e encarando esta velha despretensiosamente, podendo até julgá-la como uma simples “louca da astrologia que parte em defesa dos animais”. Ela pode surpreender.

Olar, me chamo Nastacha de Avila, sou publicitária e co-fundadora da salvo. Apaixonada por literatura: aloka do clube do livro. Trago aqui algumas dicas leituras que, de alguma forma, foram transformadoras. Sugestões? Dúvidas? Comente neste guichê. 🤓

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