“Você nunca sabe se conseguirá o que deseja, porque um livro é uma obra de artesanato”

Caroline Holder
salvoconteudo
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8 min readFeb 2, 2021

Entrevista com Lina Meruane, autora de ‘Tornar-se Palestina’, publicado pela Relicário Edições.

Lina Meruane é chilena, descendente de palestinos e mora em Nova Iorque. Em Tornar-se Palestina, a autora divide com o leitor a descoberta da própria origem: física, histórica, psicológica e sensorial. O conflito entre judeus e palestinos é confrontado com visões de outros autores, usando a linguagem e todos os tipos de dominação, inclusive a linguística, para falar de opressor e oprimidos.

O livro nos coloca no solo do conflito, literal, e também literário: por meio da escrita de Edward Said, Amos Oz, David Grossman, Ilan Pappe e Susan Sontag e Mario Vargas Llosa.

É uma obra de não-ficção, a qual o El País classificou como “um belo livro que parece escrito em voz baixa, em minúsculas, em um esforço contínuo para combater a estridência da guerra com a intimidade da literatura.”

Para conhecer mais a autora e tentar alcançar a profundidade de sua obra, fizemos uma entrevista com Lina Meruane em parceria com Solange Cunha, seguidora da @salvoconteudo, leitora voraz e fã de Lina. Confira na íntegra a conversa sobre escrita, maternidade, legalização do aborto, imigração e encontro com a própria história.

No Brasil, em um intervalo de 2 anos, tivemos a publicação de 4 livros de sua autoria. Os seus livros e os temas abordados neles conquistam cada vez mais leitores brasileiros. Quais são as diferenças no seu processo de escrita de ficção e de não-ficção, especificamente em relação ao livro “Tornar-se Palestina”?

LM: Nomear o gênero de livro implica fazer um pacto com leitores e leitoras, implica dizer-lhes, no caso da ficção, que nem tudo o que se conta aconteceu ou que nem tudo o que se conta aconteceu assim, ou mesmo que nada do que se conta aconteceu. Essa é a liberdade que a ficção oferece ao escritor, você não precisa se responsabilizar pela verdade dos fatos. Tudo é jogado na linguagem.

Já na não-ficção, por outro lado, o que se aponta para os leitores é que tudo o que é dito é tirado da experiência, porque tudo o que é dito foi vivido, pensado, sofrido pela autora.

Mesmo quando há subjetividade no relato, essa subjetividade foi vivida como verdade.

‘Tornar-se Palestina’ é um livro de não-ficção porque, ainda que a linguagem seja literária e, às vezes, o ponto de vista suponha o que os outros pensam e sentem (indico que estou imaginando para não confundir), a narrativa é o que retive da minha viagem, das minhas conversas com várias pessoas, das minhas múltiplas leituras.

Entre todos os seus livros publicados, qual foi aquele cujo processo de escrita foi o mais desafiador e por quê?

LM: Todos os meus livros são diferentes e, portanto, cada um representou um desafio diferente. Entre meus romances, o mais complexo em estrutura e, portanto, o mais difícil, é o ‘Sistema Nervoso’ — exigiu tanta concentração que, sem a bolsa de estudos que tive, nunca teria sido capaz de montá-lo…

‘Tornar-se Palestina’ foi desafiador de outra forma: tive que pesquisar muito e escrever como se não tivesse pesquisado, ou seja, quis que a informação não pesasse na escrita, quis que a história do conflito simplesmente sustentasse com leveza a história.

E, claro, você nunca sabe se conseguirá o que deseja, porque um livro é uma obra de artesanato.

O título do livro “Contra os Filhos”, publicado no Brasil em 2018, ainda causa polêmica em alguns meios. Mesmo você tendo sido muito clara de que não é contra a infância, mas sim contra o lugar que os filhos estão ocupando no imaginário coletivo, qual foi a sua intenção em se valer desse título?

LM: Acontece que a primeira versão do livro foi escrita para uma coleção onde todos os títulos eram Contra “alguma coisa” e, como eu não queria escrever contra as mães, que sempre são acusadas de alguma coisa, não quis escrever contra as crianças, porque não é contra as crianças enquanto tais, mas contra as crianças como são pensadas hoje, e assim ficou.

É um título muito polêmico mas tem conseguido chamar a atenção e para mim era importante que se lesse esta diatribe: acho muito importante falar sobre o que — ainda! — não se pode dizer no século XXI: que nem todas as mulheres querem ser mães, que as mulheres continuam a receber muita pressão.

E não só isso, pareceu-me decisivo compreender o papel que os filhos ocupam na modernidade e, em particular, a sua conversão em “clientes” dos pais, em consumidores para o mercado do sistema capitalista.

No dia 14 de janeiro de 2021, houve a promulgação, na Argentina, da lei que permite o aborto até a 14ª semana de gestação. No Chile e também no Brasil o aborto segue sendo ilegal, com exceção de circunstâncias específicas como risco de vida para a gestante e estupro. No livro “Contra os Filhos”, você escreve que “a máquina de fazer filhos é a nossa condenação”, sendo assim, qual é a importância de se discutir a legalização do aborto e por que o tema ainda gera tanta comoção?

LM: A proibição do aborto é outra forma de obrigar a maternidade, quer ela desejada quer não. Se a mulher foi estuprada e, portanto, transformada em mãe pela violência; Se a mãe é uma menina; A violência implícita na negação do aborto, bem como a ausência de políticas públicas progressistas de prevenção da gravidez fazem parte da mesma: essa é a máquina a que me refiro e que funciona de muitas maneiras e de maneira incessante.

A proibição do aborto é central nas políticas estatais pró-maternas (embora não sejam tratadas dessa forma) que consistem em garantir que as mulheres cumpram esse papel. A equivalência entre mulher e maternidade é antiga e prevenir a gravidez tem custado um esforço enorme (pílulas, preservativos, educação sexual, tudo isso custou e continua custando), mas o aborto é a última fronteira e por isso causa escândalo. A prática do aborto deve ser pensada não como uma prática isolada, mas como parte de uma política adversa à mulher, e discutir essa questão oferece a possibilidade de algumas mulheres (e homens, por que não) entenderem o que está em jogo.

Em “Sistema Nervoso”, você trabalha a questão da linguagem de forma primorosa, como por exemplo, a personagem que tenta ditar no celular uma mensagem em sua língua materna, mas o texto é transposto para outro idioma. Como a linguagem é entendida por você como um mecanismo de construção de subjetividade e de pertencimento? Em ‘Tornar-se Palestina’ esta subjetividade está presente?

LM: É verdade, a linguagem é o instrumento que permite elaborar e expressar uma subjetividade e também negá-la, não esqueçamos que existe censura e autocensura. A linguagem permite nos encontrar, mas também desencontrar, não é tão simples como simplesmente emitir palavras. Os dois livros que você menciona colocam a linguagem no limite, escrevendo-os (especialmente ‘Tornar-se Palestina’) eu entendi que não se pode ser ingênua com a linguagem.

Em “Sistema Nervoso”, o desenvolvimento dos personagens se dá a partir das enfermidades. A personagem principal, uma astrofísica imigrante, em um determinado momento pensa “(…) estamos todos contagiados, o contágio é a saúde, nós imigrantes somos vida, a imunidade é a morte”. Poderia comentar este trecho e também as questões relacionadas à imigração, debatidas atualmente em contextos políticos conservadores?

LM: Tanto no corpo político quanto no corpo biológico há a ideia de que o “outro”, o que não somos, é o que nos faz mal — “o outro” frequentemente aparece metaforizado como mau, sujo, doente, criminoso, estranho. Como algo que nos contamina e nos mata. E isso que às vezes vivenciamos em nossos corpos — hoje o coronavírus — também é usado para pensar nos migrantes: o outro perigoso, o outro poluente.

Mas essa é uma forma de pensar muito prejudicial, que poderíamos reverter se quiséssemos nos referir precisamente à biologia: estar em contato com certos “outros” é o que nos torna imunologicamente mais fortes. Se esse vírus está matando, é porque ainda não entramos em contato com ele; a vacina é o que pode nos colocar em contato sem perigo.

Podemos pensar na vacinação como uma negociação segura com o outro e assim, depois de vacinados, se encontrarmos o vírus real (a vacina é um pedaço do vírus ou o vírus atenuado) não ficaremos doentes. Devemos inverter a metáfora da guerra com o outro, tanto na biologia quanto na política, para pensar que o que precisamos é conhecer os outros, estar em contato com eles: isso nos tornará mais fortes não para destruir os outros, mas para conviver com eles.

“o que precisamos é conhecer os outros, estar em contato com eles: isso nos tornará mais fortes não para destruir os outros, mas para conviver com eles.” Lina Meruane sobre imigração.

Mesmo nos seus livros de ficção, são nítidas as questões políticas no subtexto ou mesmo na superfície do enredo. Na sua opinião, é possível escrever ficção se abdicando das questões políticas? Escrever é um ato político?

LM: É um clichê dizer que escrever é um ato político, mas acho que sim: mesmo decidir não falar de política nos coloca em um lugar político (o da abstenção, do negacionismo, do comodismo). Se vivemos em sociedade e escrevemos sobre o que acontece às pessoas na sociedade, estamos, por definição, traçando um horizonte político e participando dele.

Quais seriam suas três recomendações de literatura contemporânea latino-americana para o seu público brasileiro?

LM: Estamos em um grande momento para nossa literatura, a latino-americana. É difícil e delicado citar apenas três livros, mas menciono os três latino-americanos contemporâneos que mais me emocionaram nos últimos meses: ‘O Pai da Menina Morta’, do brasileiro Tiago Ferro; ‘Paisagem Sonora’, da mexicano-americana Valeria Luiselli; e o que estou lendo agora: ‘Mugre rosa’, novo romance da uruguaia-colombiana Fernanda Tría.

Sobre Lina Meruane

Lina Meruane nasceu em Santiago do Chile, em 1970. Sua obra de ficção inclui a antologia de contos Las infantas (1998) e os romances Póstuma (2000), Cercada (2000), Fruta podrida (2007) e Sangue no Olho (Cosac Naify, 2015). Entre seus trabalhos de não ficção estão os ensaios Viajes virales (2012), Contra os filhos (Todavia, 2018) e Tornar-se Palestina (2014). Traduzida para diversos idiomas e vencedora de prêmios como Anna Seghers (Alemanha, 2011) e Sor Juana Inés de la Cruz (México, 2012), é doutora em literatura hispano-americana pela Universidade de Nova Iorque, onde também leciona cultura latino-americana e escrita criativa. Em 2011 fundou a independente Brutas Editoras, selo “minúsculo e musculoso” com um pé nos EUA e outro no Chile.

Sobre Solange Cunha

Solange Cunha é leitora ávida, com lugar cativo em clubes de leitura, advogada, feminista e fã de Lina Meruane.

DICA: VAMOS TER CLUBE DE LEITURA SOBRE ‘TORNAR-SE PALESTINA’, É SÓ ENTRAR NO PERFIL DA @salvoconteudo NO INSTAGRAM.

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Caroline Holder
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Jornalista, editora de Política e Economia na GloboNews. Apaixonada por letras, livros, palavras e podcasts. co-criadora da @salvoconteudo.