A vida fora de balanço

Marcus Felix
Samhaus
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5 min readNov 10, 2015

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A Short Account of the Destruction of the Indies, ou “Uma breve consideração sobre a destruição dos indígenas” foi um texto publicado em 1552 por Bartolomé de las Casas sobre atrocidades cometidas contra os povos indígenas nas Américas em tempos coloniais.

Um dos motivos para a escrita dessa narrativa foi o medo da Espanha cair sob punição divina e a preocupação pela alma dos povos indígenas. Sendo assim, Bartolomé a envia para o Rei Charles I da Espanha como um alerta sobre os maus tratos sofridos pelos índios Americanos e sobre o método de colonização espanhol, que era conhecido pela matança, tortura e mutilação dos nativos.

Bartolomé era um frade espanhol piedoso da ordem dos Dominicanos que foi enviado, dentre vários outros, para cumprimento de uma outra face do colonialismo espanhol que era justamente a conversão dos indígenas ao cristianismo.

Logo no início da obra temos a descrição do território recém descoberto, que hoje conhecemos como Haiti e República Dominicana. O novo mundo que ele descreve como terra frutífera e vasta em recursos naturais era também habitada por uma grande diversidade de povos indígenas.

Como se o Onipotente Deus tivesse montado e convocado a maior parte da humanidade para habitar essa parte do mundo

Bartolomé, descreve os indígenas como inocentes, simples, aversos a qualquer tipo de malícia ou ironia. Se comportavam pacientemente e submissos aos invasores espanhois, do qual não nutriam nenhuma vingança ou ódio. Comiam com parcimônia e andavam pelados sem nenhuma necessidade de cobrir suas partes íntimas, com a exceção de um tipo de vestimenta usada para invernos ou noites mais frias. Eles eram intrigantemente abertos ao conhecimento sobre Deus mas não tinham interesse nenhum sobre o tema da imortalidade ou paraíso.

A comida que era coletada e preparada com esforço pelos indígenas não satisfazia os invasores que se alimentavam em exagero. Um espanhol comia o bastante para alimentar três famílias indígenas, família essa com dez integrantes.

Por outro lado, assim que os espanhóis vão conhecendo mais os nativos, fica clara a inaptidão deles para o trabalho duro do qual a nova colônia necessitava. Com a inocência de quem já vivia no paraíso tão sonhado pelos cristãos, os indígenas não esperavam que pouco a pouco seriam assassinados com requintes de crueldade pelos invasores espanhóis, que os viam como um povo bestial e sem utilidade, já que não serviam para o trabalho braçal da construção da colônia e seus campos de extração de minérios. Aqueles homens não eram enviados pelos Deuses como os indígenas acreditavam, e nem eram cristãos, abençoados por Deus ou coisa que o valha, como os invasores pensavam sobre eles mesmos.

Aqueles que chegaram a essas ilhas vindos das remotas partes da Espanha, e que orgulham-se em nome dos cristãos, dirigiram-se por dois caminhos principais, de modo a exterminar e extirpar esse povo da face da Terra

Bartolomé nos dá através desse texto uma oportunidade de ver a colisão de dois mundos: O paraíso e o inferno. Os que comiam da árvore da vida e aqueles que comiam do bem e do mal. Um povo vivia em simbiose com a natureza, o outro em um relacionamento de exploração. Um povo entendia Deus como a centelha da natureza que sustentava todas as coisas, e o outro como o destino final na busca por riquezas.

Nossa sociedade já apresentava sinais de degradação muito tempo antes da natureza emitir os primeiros sinais de alerta. Nós vivemos de maneira insustentável. A sociedade atual vive passando a dívida com a natureza para as próximas gerações, como se a cobrança nunca fosse chegar a tempo hábil. Projeções avaliam que o mundo possui uma dívida de 230 trilhões de dólares. A temperatura média global sobe a cada ano como efeito das emissões dos gases de efeito estufa. Esgotamento dos reservatórios de água potável em tempos de seca já é realidade em cidades grandes como São Paulo e Los Angeles.

Perdemos o vínculo com o nosso planeta, vivemos orientados pelas nossas próprias necessidades egoístas e o nosso senso do que é certo e errado é relativo. Precisamos olhar para o mundo atual com os olhos de Bartolomé. Um olhar crítico sobre nossas crenças e anseios, pois vivemos o estágio avançado dessa loucura expansionista que em tempos coloniais dizimaram os verdadeiros habitantes das Américas.

Segundo o trabalho de Harold J. Morowitz, um biofísico americano, leis da termodinâmica aplicada a sistemas biológicos apontam para a hipótese de que a vida emerge deterministicamente de acordo com leis da física e química de modo a balancear o fluxo de energia entre os átomos. É como se a vida fosse inevitável para o universo. Na verdade, há várias coisas inanimadas que podem ser consideradas vivas, depende somente de como definimos o que é vida.

A energia que flui por um sistema age de forma a organizar este sistema

O Planeta Terra é um sistema fechado. O espaço que o cerca é estéril e inóspito. Tudo que acontece aqui, permanece aqui. A natureza é um sistema que tudo reaproveita, distribuindo a energia numa complexa cadeia de seres vivos e inanimados. Células se organizaram para melhor aproveitamento desta energia, que por sua vez dão origem a seres mais complexos.

Esses seres evoluiram até dar origem a uma máquina completa e sofisticada. O advento do neocortex deu a possiblidade desse ser criar ferramentas e estratégias de sobrevivência, principalmente como melhor aproveitar a imensa quantidade de recursos e energia disponível no mundo. Eu poderia estar falando do ser humano moderno com todo o seu método e razão, mas eu estou falando dos nativos que viviam nas américas antes da chegada dos espanhóis, ou qualquer outro povo nativo “subdesenvolvido”. Esses sim tinham a sabedoria necessária para viver em harmonia com a natureza, como um átomo que distribui a energia para manter o todo em equilíbrio.

O ser humano que se desenvolveu no grande continente travou muitas guerras, conquistou muitos territórios, criou sua própria justiça e máquinas que o poupam do trabalho duro mas perdeu seu parentesco com o planeta. Hoje ele vive fora de balanço, é sensível e faz do progresso o seu próprio Deus.

Koyaanisqatsi (1982)

O sistema faz sua parte, mediante as leis da física e química para manter a sí próprio em equilíbrio. E como se não pertencêssemos a este lugar, o ajuste da natureza parece querer nos tirar dessa complexa equação. Tufões, furacões, El niños, derretimentos das calotas polares, aumento da temperatura global.

Todas essas coisas parecem querer nos matar.

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