Tropa de Elite, um reencontro constrangedor

…ou, como o contexto pode mudar uma obra cinematográfica.

Patrian
O Incoerente

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O ano era 2007. Tropa de Elite ainda não havia estreado nas salas de cinema, mas isso não o impedia de já ter sido visto por milhares de pessoas e de ser um fenômeno da cultura pop brasileira. O filme de José Padilha podia não estar passando na tela grande, mas já gerava polêmicas por todo o país. Era assunto nos mais variados níveis da sociedade e é claro, estava lá, rodando no DVD player dos meus tios.

Meu primo, com apenas 7 anos, já havia assistido pelo menos três vezes, antes de convidar meu irmão e eu (respectivamente com 8 e 11 anos), para assistirmos ao filme. E como vibrávamos! A empolgação era comparada a de assistir a um dos filmes da Marvel nos dias de hoje. A música, a ação, as frases de efeito, as frases cômicas, os personagens, era incrível! Naquele mesmo dia, assistimos pelo menos mais duas vezes. E no resto da semana, pelo menos mais meia dúzia. Poucas eram as frases que não havíamos decorado.

Por que estou contando isso? Bom, não é para questionar o porquê de um filme desses estar na mão de crianças — embora deveria. Também não é para debater sobre a pirataria surreal que o filme sofreu (isso já foi debatido a exaustão na época, e acredite, todos esses debates estão obsoletos). O motivo pelo qual estou escrevendo sobre algo de 13 anos atrás, é que recentemente eu tive a oportunidade de revisitar a obra com alguém que, inacreditavelmente, nunca havia assistido ao filme. E posso afirmar que poucos filmes foram tão desconfortáveis quanto esse “reencontro”.

Ao apresentar o filme para alguém que não o assistiu na época, fica evidente o quanto o contexto mudou nossa percepção sobre a obra e a fez envelhecer mal. O desconforto de um espectador novo, logo nos primeiros minutos, é óbvio. E isso refletiu sobre o meu próprio desconforto, ao confrontar aquela história tantos anos depois.

Tropa de Elite se tornou incômodo e, dado ao contexto atual, constrangedor. Seu enredo se tornou ainda mais cruel e até as frases cômicas (que ainda repetimos em memes e figurinhas de Whatsapp) se tornaram trágicas. Chega a ser irônico, que o filme tenha me parecido mais brutal hoje do que quando eu tinha 11 anos de idade. Novamente, é desconfortável.

Mas não tenho nenhuma intenção de criticar a obra, pelo contrário. Eu ainda a acho uma das produções mais importantes e grandiosas do cinema nacional, sobretudo pela visibilidade que trouxe para nossas produções. É um filme impactante, com uma linguagem competente e cinematograficamente forte.

Também não quero criticar, apenas pontuar, a visão de mundo sistemática, fragmentada e cínica do diretor, José Padilha. Que apesar de muito competente como diretor e roteirista, ignora conceitos e fenômenos sociais, fundamentais para a sociedade que ele tenta retratar — erros os quais ele voltaria a cometer em O Mecanismo, sua série na Netflix.

Minha intenção aqui, é observar o contexto em qual o filme foi lançado e imaginá-lo nas configurações sociais e históricas atuais. Afinal, estamos em um momento em que um filme, baseado em um vilão de quadrinhos como o Coringa (2019), gera milhares de discussões e questionamentos sobre seu impacto social e psicológico. E se o Coringa, que é sociologicamente mais fraco que Tropa de Elite, gera tantas polêmicas e debates, calcule o impacto que o filme de Padilha teria hoje.

Não que em 2007 não houvessem questionamentos e discussões a respeito do filme, houveram. Mas nada se compara a repercussão e a dimensão que as coisas tomam hoje. Quando o filme foi lançado, esses debates eram pautados apenas pela mídia tradicional e não chegavam a milhares de brasileiros, que acabaram internalizando a obra sem questioná-la e desconstruí-la. Não havia espaço para que todos participassem das discussões, pois a comunicação era outra. Em 2007 eu era apenas uma criança de 11 anos, que só teria acesso à internet três anos depois e a web, apenas um rascunho do que é hoje.

Uma coisa importante a ser discutida atualmente, é a relação do filme com o sentimento punitivista que nossa sociedade possuía e ainda possui. O cidadão médio, além de um total desprezo pelos direitos humanos, possui quase um fetiche pela vingança e punição, mesmo sabendo da ineficácia de tais métodos. Basta lembrar da fixação e da expectativa que o publico tinha na continuação direta e imediata de Tropa de Elite, que mostraria o rosto do traficante Baiano, desfigurado por um tiro de calibre 12. Era quase uma lenda urbana que o segundo filme começaria com tal cena. Muitos documentários, compilados de operações policiais e filmes amadores de mesmo tema, foram vendidos como se fossem essa continuação.

Outra discussão à qual a obra seria mais amplamente submetida, é a quantidade de crimes que o protagonista e “herói” do filme, Capitão Nascimento, comete ao longo de 01H58 de duração. Tortura, assassinato, abuso de autoridade e violação dos direitos humanos, só para citar alguns. Crimes cometidos por um personagem que se coloca acima da lei e da justiça, em nome de um moralismo míope, baseado em um fragmento da realidade. Nascimento é o clássico homem comum com uma missão. E não há nada mais perigoso que um homem comum com uma missão, como podemos observar nas eleições presidenciais de 2018.

Tropa de Elite poderia ser comparado (novamente) ao filme do Coringa. Pois, assim como o filme do palhaço poderia ter despertado sentimentos obscuros e perigosos de uma parcela dos fãs (incels), Tropa de Elite, aplicado no cenário atual, poderia saciar ou despertar os anseios vingativos de uma parcela da sociedade. Nos dias de hoje, José Padilha seria cobrado pela irresponsabilidade de retratar um personagem como Capitão Nascimento de forma heroica e messiânica.

Existem muitos outros personagens da cultura pop que possuem os mesmos problemas que Nascimento. Noventa por cento dos ícones hollywoodianos cometem os mesmos crimes que o protagonista de Tropa de Elite. Mas na maioria dos casos, são personagens motivados claramente por vinganças pessoais e que são tratados nas obras como psicologicamente instáveis. Comportamentos inadmissíveis no caso de um agente e representante da lei, como Nascimento. Padilha poderia ter mostrado o protagonista como em algumas abordagens do Justiceiro (Punisher) da Marvel, por exemplo, que na maioria de suas histórias é tratado como insano, desequilibrado e perigoso, além de desvinculado das autoridades legais. Mas ao invés disso, o diretor trata Nascimento como alguém que entendeu e decifrou o “sistema” e o coloca como um detentor da verdade, em uma narração presunçosa e onisciente que permeia todo o filme — mais um erro que se repetiria em O Mecanismo.

Apesar dos problemas e de um certo nível de nocividade, reafirmo que Tropa de Elite ainda é um excelente filme de ação. Bem dirigido, produzido e atuado, mas que infelizmente, reflete muito menos sobre a sociedade brasileira, do que fizemos parecer nos últimos anos. Padilha escolheu contar sua história com uma moralidade hipócrita e uma simplificação cínica, tratou o “sistema” como uma entidade e personagens problemáticos como heróis. O diretor ignorou diversos aspectos humanos e sociais, fazendo com que o filme se tornasse apenas um estereótipo de ação do Rio de Janeiro e da segurança pública Brasileira.

Mesmo que no segundo filme (Tropa de Elite II, 2010) tentasse amenizar ou disfarçar isso, a presunção de Padilha mostrou o fascismo das instituições, de uma forma que o brasileiro se simpatizasse ainda mais com ela.

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Patrian
O Incoerente

Escrevo menos que gostaria e tenho mais gibis do que consigo ler. samuel.patrian@outlook.com