AS MARCAS DO CÂNCER

Dyuniors
Saúde Molecular
Published in
6 min readAug 3, 2022

Segundo dictionary.com, “hallmarks” são “marcas” ou “aspectos específicos” de um determinado objeto. Se você se interessa por oncologia e sabe que todo tumor é diferente um do outro, como podemos encontrar características idênticas em todos os tumores?

Segundo o último relatório (2020–2022), do Instituto Nacional do Câncer (INCA), a figura abaixo traz as taxas ajustadas para os dez tipos de cânceres mais presentes na população brasileira, no ano de 2020 [*com exceção dos tumores de pele não melanoma].

Fonte: https://www.inca.gov.br/estimativa/estado-capital/brasil

Fonte: https://www.inca.gov.br/estimativa/estado-capital/brasil

Todos os tumores listados acima, e possivelmente todo modelo tumoral, desenvolvem marcas específicas, sendo estas “marcas” (ou capacidades adquiridas), grandes responsáveis por consequências a níveis molecular, celular, bioquímico e ao microambiente tumoral, contribuindo para a progressão da doença. A quantidade de marcas e os níveis de especialização delas estão intimamente relacionados à evolução e cronificação da patologia, independentemente da idade, gênero, etnia, crença ou mesmo do signo do paciente.

Um breve histórico do câncer

Tumores são observados e investigados há muito mais tempo do que imaginamos. Na obra “O imperador de todos os males”, de Siddhartha Mukherjee, o autor comenta sobre a “certidão de nascimento”, do que hoje conhecemos como um tumor sólido maligno (ou câncer); a “certidão” foi em um papiro (com 5 metros) datada do século VII a.c., no Antigo Egito — pelo polímata egípcio Imhotep — o documento continha a descrição de 48 doenças sendo a doença 45 descrita como “massas salientes no peito e que se espalharam pelo peito, frias, duras e densas como uma fruta”. Segundo Siddhartha, não há descrição mais vívida de um câncer de mama como esta. Antes desse registro obviamente pessoas desenvolviam tumores benignos e malignos ao longo de suas vidas, mas ao considerarmos vários fatores da antiguidade como ambientes insalubres, altas taxas de infecção e saneamento básico praticamente inexistente, as pessoas morriam cedo ou muitas vezes eram vítimas de outras doenças agudas ou crônicas. Lembrando que o câncer é uma doença que exige tempo, ou seja, as células precisam vencer muitas barreiras além da fronteira genética.

À medida em que a humanidade foi se desenvolvendo industrialmente, unido ao advento de equipamentos como microscópios ópticos, por fluorescência, confocais, análises de varredura celular, análises de citometria de fluxo e, mais atualmente, análises genéticas e epigenéticas, expandiram-se as perspectivas e descobriram-se novas abordagens para entendermos mecanismos essenciais para o desenvolvimento de um tumor maligno. Essas investigações ganharam mais força no início do séc. XX, período em que a humanidade tinha evidências clínicas e epidemiológicas de que o câncer seria o que se chamou por muito tempo de “o mal do século”; seja este um “mal” pela sua variabilidade genética impenetrável ou pelas novas camadas de complexidade da tumorigênese que a cada dia se desvendam. Quando o assunto é sobrevivência, essa doença é um general!

A construção das marcas

Os biólogos Douglas Hanahan (1951) & Robert A. Weinberg (1942) juntaram esforços para compilar informações de uma grande quantidade de fontes científicas para entender, do ponto de vista celular, quais transformações são cruciais para o desenvolvimento de uma célula carcinogênica, partindo de alterações genéticas em células normais, e de que forma podem ser entendidas como etapas de qualquer formação tumoral; os autores abordaram majestosamente o assunto, partindo da hipótese de desenvolvimento dos tumores semelhantemente à evolução darwiniana, a qual permite diferentes mutações em diferentes células do mesmo tumor, garantindo capacidades distintas de sobrevivência naquele microambiente.

Com base nessa e outras premissas, Hanahan e Weinberg definiram, em 2000, seis marcas (ou hallmarks) que estariam envolvidas na capacitação dos tumores, sendo elas:

1. Autossuficiência em sinais estimuladores de crescimento;

2. Insensibilidade para fatores que inibem o crescimento;

3. Invasão de outros tecidos e capacidade de formar metástases;

4. Potencial ilimitado de multiplicação;

5. Estímulo ao desenvolvimento de novos vasos sanguíneos (neoangiogênese); e

6. Bloqueio dos mecanismos naturais de morte celular (ex.: apoptose).

Na segunda revisão, em 2011, foram adicionadas outras quatro características. Duas delas foram consideradas “hallmarks emergentes” (i. reprogramação do metabolismo celular e ii. evasão do sistema imune), ou seja, não se sabia se esses conceitos poderiam ser aplicados a todos os tumores; entretanto, atualmente, assim como as seis originais, podem ser considerados os oito principais hallmarks do câncer. Já a instabilidade genômica e a capacidade de promoção de inflamação pelo tumor, foram consideradas “hallmarks habilitantes”. Ou seja, são características dos tumores e do microambiente tumoral que facilitam a aquisição (ou habilitam) outras marcas do câncer, supracitadas.

Recentemente, em janeiro de 2022, Douglas Hanahan publicou a mais recente revisão sobre os Hallmarks e trouxe consigo discussões essenciais sobre a participação mais sólida de outros componentes celulares e da maior complexidade do microambiente tumoral considerando fatores genéticos, epigenéticos e moleculares.

Acessado em: https://visualsonline.cancer.gov/collection.cfm?groupid=4.

Nesta última revisão, foi levantada a questão de células senescentes (ou envelhecidas) serem essenciais ao bom funcionamento do microambiente tumoral. Importante ressaltar que células senescentes no microambiente não constituem um hallmark por si só, mas sim um tipo celular que contribui para o funcionamento daquele microambiente e, por consequência, é um hallmark promotor de uma capacidade (independente da célula originária; ex.: fibrosblastos, células estromais, etc.). Dessa forma, as células “velhas” de um microambiente, mesmo quando programadas para morrer, podem liberar substâncias ou promover a alteração fenotípica/morfológica daquele tumor.

Hanahan relata que a capacidade de desbloquear a plasticidade fenotípica é crucial para a patogênese do câncer, uma vez que existem estágios de diferenciação que podem ser determinantes para a formação de novas células tumorais. Dessa forma alterar a capacidade da célula tumoral para que esta seja capaz de transitar de sua célula progenitora para uma morfologia desejada, dados outros fatores do microambiente. Esta alteração da plasticidade pode se dar por três diferentes mecanismos (i. desdiferenciação, ii. bloqueio da diferenciação, e iii. transdiferenciação) que abordaremos em outros conteúdos. Uma vez que a célula tumoral adquiri essa capacidade, controlar sua progressão se torna um desafio maior.

Em se tratando de epigenética, o autor descreve com mais cautela o conceito de alteração epigenética não mutacional, já que este é um campo de estudo ainda muito particular e recente, mas fica claro pelas evidências apresentadas que o microambiente tumoral exerce pressões seletivas sobre células tumorais seja pela falta de oxigênio e nutriente, pela heterogeneidade de fenótipos de células tumorais ou ainda pelas células do estroma (ex.: fibroblastos) que, através da liberação de mediadores químicos e fatores de crescimento, afetam as vias de sinalização intracelulares das células tumorais. Esses mecanismos contribuem solidamente para alteração do epigenoma tumoral.

No caso do conceito de microbiomas polimórficos, as afirmações são consistentes e têm ganhado cada vez mais força quando pensamos nas diferentes respostas dos pacientes ou mesmo na velocidade de evolução da doença. Em diversas patologias, investiga-se o papel da microbiota dos diferentes órgãos do nosso corpo; e a discussão não é somente para vender probióticos, mas sim para avaliar se há participação efetiva desses microrganismos no desenvolvimento ou progressão tumoral. As evidências indicam que há microrganismos capazes de alterar a resposta de determinadas células e auxiliar na carcinogênese por liberação de substâncias (dada a variabilidade de microrganismos em nosso corpo) e imunorregulação quando em pressão do ambiente. Acredita-se, que ambientes inflamados ou com instabilidade genotípica das células podem também contribuir para a liberação de substâncias por esses microrganismos causando instabilidade tecidual por alguns mecanismos ainda sob investigação.

Nós próximos textos, abordaremos cada um dos hallmarks citados e como são observados na prática pré-clínica e clínica.

Stay tuned!

Referências:

1. INCA, 2020. Estimativa 2020: incidência de câncer no Brasil. Acessado em https://www.inca.gov.br/estimativa/estado-capital/brasil

2. Siddhartha Mukherjee. O Imperador de todos os males: uma biografia do câncer; tradução Berilo Vargas — 1ª ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

3. Hanahan D, Weinberg RA. The hallmarks of cancer. Cell 2000; 100:57–70.

4. Hanahan D, Weinberg RA. Hallmarks of cancer: the next generation. Cell 2011; 144:646–74.

5. Hanahan D. Hallmarks of Cancer: New Dimensions. Cancer Discov. 2022 Jan;12(1):31–46.

--

--