O que é a farmacogenética?
Um caminho para a medicina personalizada
A farmacogenética estuda a relação entre a variabilidade genética e a resposta terapêutica. É uma das ferramentas da medicina personalizada ou medicina de precisão que visa compreender os fatores genéticos que afetam a resposta terapêutica a um medicamento.
Nos últimos anos, houve uma crescente preocupação em aumentar a precisão dos tratamentos, para melhorar a efetividade e reduzir a ocorrência de eventos adversos. Há diversas variáveis que influenciam na resposta terapêutica, incluindo:
· as características fármaco (princípio ativo);
· a forma farmacêutica;
· o modo de administração;
· interações medicamentosas e alimentares.
Uma variável importante é o código genético do paciente. A variabilidade genética entre indivíduos pode fazer com que a resposta terapêutica a um determinado medicamento não seja idêntica para todos. Com “resposta terapêutica”, refiro-me à efetividade e toxicidade do medicamento.
Eventos adversos a medicamentos, por exemplo, não acontecem em todos os indivíduos, mas ainda podem ser bastante comuns, atingindo até 10% dos pacientes em alguns casos. Além disso, muitos podem responder com menor ou maior intensidade a determinadas terapias e doses, ou até mesmo pararem de responder ao tratamento (ou pacientes refratários à terapia).
Afinal, como podemos garantir qual tratamento será o mais adequado para cada indivíduo, com o menor número de intercorrências possível? A farmacogenética vem para ajudar a solucionar esse problema.
Como variantes genéticas podem afetar a resposta terapêutica?
Para explicar qual a relação entre as variantes genéticas e a efetividade ou toxicidade de um medicamento, é necessário entender a função dos genes e das proteínas que são codificadas por eles.
Estima-se que haja em torno de 22 mil genes que codificam proteínas no genoma humano, segundo a base de dados Ensembl [1]. Cada gene pode conter de centenas a milhares de variações em sua sequência, sendo elas chamadas de variantes.
As variantes genéticas podem, ou não, alterar função da proteína que é codificada por aquele gene. Não se preocupe!A maioria das variantes não tem qualquer impacto. No entanto, algumas — que, em geral, são menos comuns na população — podem alterar a funcionalidade da proteína final ou até mesmo a sua expressão (produção). Considerando que as proteínas constituem diversos componentes de funções importantíssimas nos processos biológicos — incluindo enzimas, transportadores de fármacos, receptores transmembrana e canais iônicos — não é de se estranhar que as variantes também podem ter algum impacto na ação de fármacos.
As variantes genéticas podem impactar dois processos inerentes aos fármacos:
1. Farmacocinética
A farmacocinética diz respeito ao caminho que o fármaco percorre desde sua absorção até sua excreção [2]. Esse caminho tem 4 etapas:
· Absorção;
· Distribuição;
· Metabolização;
· Excreção.
Em geral, essas etapas contam com a participação de várias proteínas, principalmente enzimas de metabolização e transportadores de influxo e efluxo.
Foram descritas diversas variantes em enzimas de metabolização, principalmente as monooxigenases do citocromo P450 (CYP450). Existem várias isoenzimas que compõem o CYP450, dentre elas a CYP2C9, CYP3A4, CYP3A5, e CYP2D6. A maioria dos fármacos e outras moléculas são inativados por elas; elas também têm uma participação importante em interações medicamentosas.
Variantes genéticas podem causar uma menor ou maior atividade da enzima, impactando diretamente nas concentrações plasmáticas do fármaco e, consequentemente, na resposta terapêutica. Enzimas com atividade aumentada pela variante podem fazer com que o fármaco seja inativado em maior intensidade, consequentemente reduzindo a concentração de molécula ativa; isso pode causar uma redução da efetividade. Já aquelas com atividade reduzida podem aumentar drasticamente as concentrações plasmáticas de fármaco, já que ele não é adequadamente inativado; indivíduos com essas variantes podem ter maior propensão a apresentar eventos adversos.
De acordo com o grau de atividade de cada enzima para cada fármaco, os indivíduos podem ser classificados como metabolizadores lentos (enzima de menor atividade), intermediários, rápidos ou ultrarrápidos (enzima de maior atividade). Essa definição é importante para estabelecimento da dose correta para cada paciente. Para alguns medicamentos, como a varfarina, é crucial realizar o teste farmacogenético para a presença das variantes CYP2C9*2 e CYP2C9*3, que conhecidamente afetam as concentrações plasmáticas do medicamento, de modo a ajustar a segundo a presença dessas variantes [3]. Em um texto posterior, abordaremos com mais detalhes a questão dos medicamentos anticoagulantes.
Variações na sequência de aminoácidos de transportadores também podem impactar no efeito do fármaco. Por exemplo, aumentar a atividade de um transportador de efluxo pode intensificar o efluxo de um fármaco para fora do seu local de ação — o que, além de reduzir a sua efetividade, aumenta as concentrações plasmáticas do fármaco e aumenta o risco de eventos adversos.
É importante destacar que cada fármaco depende de enzimas e transportadores específicos. Por isso, nem sempre uma variante que resulta em uma proteína de baixa função irá impactar dois fármacos da mesma forma e intensidade, mesmo que eles dependam da atividade dessa proteína. Por isso, é necessário estudar como cada fármaco se comporta na presença de cada variante por estudos funcionais com células para quantificar o impacto e fazer estudos robustos em humanos para verificar se de fato essas variantes têm ou não impacto na resposta terapêutica.
2. Farmacodinâmica
A farmacodinâmica trata dos efeitos fisiológicos, bioquímicos e moleculares do fármaco. A ação dos fármacos depende, em geral, da interação com alvos terapêuticos (enzimas, canais iônicos e receptores, por exemplo). O fármaco pode ter efeito inibitório (antagonista) ou efeito estimulante (agonista), dentre outros. Além do alvo terapêutico, os fármacos também podem atuar em outros alvos e resultar em efeitos colaterais desejados ou indesejados (eventos adversos).
Deficiências na interação entre o fármaco e seu receptor alvo, resultantes da presença de variantes, podem reduzir a resposta terapêutica. Podemos citar novamente o exemplo da varfarina: portadores da variante rs9923231 em VKORC1, que codifica o alvo terapêutico da varfarina, necessitam de doses menores do medicamento para obter o efeito [3].
Variantes em outros genes também podem aumentar a propensão a eventos adversos. Por exemplo, variantes em no gene que codifica o antígeno do leucócito humano, HLA-B, foram associadas a hipersensibilidade a diversos fármacos, incluindo carbamazepina, oxcarbazepina, fenitoína, alopurinol e abacavir [4].
Este assunto é bastante extenso e varia de fármaco para fármaco. Nos posts específicos para cada grupo farmacológico, abordaremos os principais genes e os conceitos por trás de cada um.
Situação atual: testes farmacogenéticos no mundo e no Brasil
Testes farmacogenéticos resultam em benefícios claros para a segurança do paciente. Há, também, evidências robustas de que são custo-efetivos, uma vez que previnem gastos relacionados ao tratamento de eventos adversos que poderiam ser evitados caso o teste farmacogenético tivesse sido feito previamente [5,6].
Apesar disso, os testes farmacogenéticos ainda não foram totalmente implementados em grandes sistemas públicos de saúde, incluindo o Sistema Único de Saúde brasileiro. Os testes farmacogenéticos têm sido realizados principalmente em ambientes acadêmicos e em alguns centros especializados, com grande foco nos EUA e na Europa.
Apesar disso, a Royal College of Physicians e a British Pharmacological Society publicaram recentemente um relatório com um conjunto de recomendações para concretizar a implementação de testes farmacogenéticos no sistema de saúde britânico, o National Health System (NHS). O relatório aborda desde o conhecimento sobre as evidências de cada teste até o treinamento de profissionais de saúde para interpretação e comunicação dos resultados aos pacientes, garantindo que a farmacogenética seja efetivamente implementada na prática [7].
Um projeto interessante também tem sido implementado na Espanha. A iniciativa, chamada de MedeA, é um projeto de implementação clínica da medicina personalizada em serviços de saúde e é encabeçado pelo prof. Adrián Llerena da Universidade de Extremadura. O projeto visa promover a prescrição individualizada de medicamentos utilizando a informação genética e o histórico clínico do paciente, através da implementação de algoritmos de decisão. O projeto já está na sua quarta fase e tem previsão de ser concluído em 2023. [8]
No entanto, grupos de trabalho, como o Clinical Pharmacogenetics Implementation Consortium (CPIC), já publicaram diversas diretrizes para medicamentos que apresentam marcadores farmacogenéticos com evidência robusta em seu website PharmGKB. Essas diretrizes apresentam, inclusive, predições do fenótipo do paciente, de acordo com o genótipo apresentado. A Food and Drug Administration (FDA), agência sanitária dos Estados Unidos, também tem acrescentado em bula informações sobre testes farmacogenéticos e ajustes de doses para estes casos.
No Brasil, temos testes farmacogenéticos disponíveis, mas, por enquanto, há pouca demanda por falta de treinamento. Além disso, temos uma dificuldade a mais: as variantes genéticas foram estudadas, em sua maioria, em europeus de etnia caucasiana. Somos extremamente miscigenados e, em alguns indivíduos, há pouca diferença genética entre alguns grupos autodeclarados brancos, pardos e pretos, como mostra uma publicação recente na revista Nature do Prof. Michel Navlasky do Instituto de Biociências (USP) [9]. Discuti um pouco sobre essas dificuldades em uma revisão sobre farmacogenética de estatinas, publicada em 2021 [10].
Essa miscigenação dos brasileiros torna os testes farmacogenéticos ainda mais cruciais, uma vez que é impossível prever como o indivíduo responderá a uma determinada terapia somente através do fenótipo dos brasileiros. No entanto, o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer com relação à implementação da farmacogenética.
Referências
- Salzberg, S. L. Open Questions: How Many Genes Do We Have? BMC Biol. 2018, 16 (1), 1–3.
- Negus, S. S.; Banks, M. L. Pharmacokinetic — Pharmacodynamic (PKPD) Analysis with Drug Discrimination. Curr. Top. Behav. Neurosci. 2018, 39, 245.
- Rane, A.; Lindh, J. D. Pharmacogenetics of Anticoagulants. Hum. Genomics Proteomics 2010, 2010.
- Koomdee, N.; Kloypan, C.; Jinda, P.; Rachanakul, J.; Jantararoungtong, T.; Sukprasong, R.; Prommas, S.; Nuntharadthanaphong, N.; Puangpetch, A.; Ershadian, M.; John, S.; Biswas, M.; Sukasem, C. Evolution of HLA-B Pharmacogenomics and the Importance of PGx Data Integration in Health Care System: A 10 Years Retrospective Study in Thailand. Front. Pharmacol. 2022, 13, 1159.
- Verbelen, M.; Weale, M. E.; Lewis, C. M. Cost-Effectiveness of Pharmacogenetic-Guided Treatment: Are We There Yet? Pharmacogenomics J. 2017 175 2017, 17 (5), 395–402.
- Plumpton, C. O.; Roberts, D.; Pirmohamed, M.; Hughes, D. A. A Systematic Review of Economic Evaluations of Pharmacogenetic Testing for Prevention of Adverse Drug Reactions. Pharmacoeconomics 2016, 34 (8), 771–793.
- https://www.bps.ac.uk/getmedia/b43a3dca-1bbf-4bff-9379-20bef9349a8c/Personalised-prescribing-full-report.pdf.aspx
- https://www.institutoroche.es/recursos/noticiasmedicinapersonalizada/803/Proyecto_MedeA_terapia_centrada_en_el_paciente
- Naslavsky, M. S.; Scliar, M. O.; Yamamoto, G. L.; Wang, J. Y. T.; Zverinova, S.; Karp, T.; Nunes, K.; Ceroni, J. R. M.; Carvalho, D. L. de; Simões, C. E. da S.; Bozoklian, D.; Nonaka, R.; Silva, N. dos S. B.; Souza, A. da S.; Andrade, H. de S.; Passos, M. R. S.; Castro, C. F. B.; Mendes-Junior, C. T.; Mercuri, R. L. V; Miller, T. L. A.; Buzzo, J. L.; Rego, F. O.; Araújo, N. M.; Magalhães, W. C.; Mingroni-Netto, R. C.; Borda, V.; Guio, H.; Barreto, M. L.; Lima-Costa, M. F. V.; Horta, B. L.; Tarazona-Santos, E.; Meyer, D.; Galante, P. A. F.; Guryev, V.; Castelli, E. C.; Duarte, Y. A. O.; Passos-Bueno, M. R.; Zatz, M. Whole-Genome Sequencing of 1,171 Elderly Admixed Individuals from the Largest Latin American Metropolis (São Paulo, Brazil). 2020, No. BioRxiv 298026 [Preprint].
- Dagli-Hernandez, C.; Zhou, Y.; Lauschke, V. M.; Genvigir, F. D. V.; Hirata, T. D. C.; Hirata, M. H.; Hirata, R. D. C. Pharmacogenomics of Statins: Lipid Response and Other Outcomes in Brazilian Cohorts. Pharmacological Reports. August 17, 2022, pp 47–66.