Protelação e ansiedade no desenvolvimento de produtos de tecnologia
Para começar, gostaria de fazer uma pergunta impertinente: qual é o limiar entre a protelação (a ruim, que todos queremos evitar que se torne algo comum em nossas vidas) e a postergação consciente (que por vezes é necessária no desenvolvimento de software e, por que não dizer, até em nossas decisões para a vida)?
Creio ser importante entender que ambas palavras “protelação” e “postergação” são sinônimas entre si e significam adiar, atrasar, deixar para depois. Mas quando colocamos a palavra “consciente” combinada com “postergação”, as coisas mudam, não em suas formas originais, mas nos resultados práticos do dia-a-dia.
Percebi ao longo do tempo o quanto estamos acostumados a associar conotações pejorativas aos termos “protelação” e “procrastinação”. Aqueles que têm estes termos como adjetivos atribuídos a si normalmente são alvos de críticas do tipo: “Fulana não consegue ter bons resultados porque é uma procrastinadora”.
Mas existe um lado da postergação, da procrastinação, da protelação, chame como quiser, que é saudável até demais, e é disso que eu gostaria de falar neste texto.
Mas antes de falar da coisa boa, preciso fazer uma explicação rápida a respeito da protelação “ruim”. Esta, definitivamente, não será uma explicação exaustiva sobre os aspectos dela, portanto pretendo tocar apenas superficialmente no assunto.
Então, o que é a protelação ruim e por quê as pessoas protelam?
Em seu livro, “The Procrastinator’s Handbook”, Rita Emmet resume “protelar” como deixar coisas realmente importantes para depois. Para ela, o ato de protelar pode causar angústia, estresse, baixa autoestima e doenças, além de potencialmente prejudicar nossas relações com familiares, colegas de trabalho e gestores.
Rita sumariza, também, alguns dos principais motivos pelos quais nós protelamos:
1 — Protelamos porque temos alguns medos (da imperfeição, do desconhecido, do julgamento, de cometer erros, do sucesso, da mudança, de sentimentos, de terminar, da rejeição e de tomar decisões erradas);
2 — Protelamos porque queremos fazer tudo ao mesmo tempo (o mito da pessoa multitarefa);
3 — Protelamos porque estamos sobrecarregados de coisas que estão além da nossa capacidade de processamento.
OK! Agora tendo uma breve noção do que é a protelação, seus possíveis efeitos e prováveis causas, como é que isso pode ser bom de alguma maneira?
O lado positivo da protelação, que chamo gentilmente de postergação consciente
Chegamos a uma parte mais densa do que estou propondo aqui e espero que você esteja com uma xícara de café em mãos para conseguir passar por toda a construção do pensamento e abertura de vertentes que vão acontecer agora. Pretendo amarrar todos os pontos em um único nó, lá no fim, então segura aí, por favor.
Cone da incerteza e horizonte de tempo
O cone da incerteza está relacionado às estimativas de um projeto ao longo do tempo, mas a ilustração vai me servir muito bem para explicar o ponto que quero tratar: o descolamento que pode existir entre a suposição e a realidade.
Extraí esta figura do livro “SCRUM: A arte de fazer o dobro do trabalho na metade do tempo”, de Jeff Sutherland e também vou fazer uso da explicação de Jeff:
“Esse gráfico mostra que as estimativas iniciais do tempo de trabalho podem corresponder a um intervalo entre 25% e 400% do tempo gasto na realidade. A estimativa mais alta é dezesseis vezes maior que a mais baixa. À medida que o projeto avança e se estabiliza, essas projeções começam a se aproximar cada vez mais do tempo real, até o momento em que não há mais expectativas, somente a realidade.”
A parte mais importante, que eu gostaria de refrisar, é esta: “[…] À medida que o projeto avança e se estabiliza, essas projeções começam a se aproximar cada vez mais do tempo real, até o momento em que não há mais expectativas, somente a realidade”.
Eu gosto muito de usar uma metáfora (que provavelmente aprendi com algum autor, mas não lembro qual) de que precisamos olhar para o desenvolvimento de produtos de tecnologia como olhamos para o horizonte. Aquilo que está próximo enxergamos com clareza e conhecemos os detalhes a olho nu. Para objetos ainda distantes, vemos suas formas, porém precisamos chegar mais perto para enxergar seus detalhes.
Aqui está o pulo do gato (e uma explicação fácil para o uso do cone da incerteza em nosso contexto). Conforme avançamos no caminho em direção aos objetos que estão mais distantes, conseguimos enxergar melhor seus detalhes, sendo que a cada passo que damos em direção ao horizonte, mais objetos mostram seus detalhes e novas formas se apresentam na linha do horizonte — que não tem fim.
Ter um plano é importante, mas o planejamento é ainda mais
Eu vivo repetindo para todo lado, e acho que as pessoas já estão até cansadas de me ouvir falar, sobre o quarto valor do manifesto ágil (que é quase um axioma no desenvolvimento ágil de software):
Responder a mudanças mais que seguir um plano
Lembro-me de em algum momento no passado ter trocado em minha mente o “responder” por “reagir”, porque para mim, enviesado pela 3ª lei de Newton, reagir a algo tem muito mais ação do que apenas responder a um estímulo repentino. E reagir às mudanças mais do que seguir um plano é, definitivamente, estar atento a como as circustâncias que nos rodeiam se modificam conforme nós vamos progredindo no caminho e recalibrar os parâmetros, podendo ser necessário recalcular a rota, ou até mesmo abandonar o trajeto.
Aqui quero fazer uma união entre a explicação do cone de incerteza com o 4º valor do manifesto ágil, pois, uma vez que há pouca visibilidade sobre coisas que estão distantes no horizonte, é vital darmos passos e coletarmos mais informações de como a execução de nosso plano está se saindo. Num exemplo simples: se você quiser atravessar um rio, terá algumas opções, e poderá optar por ir de bicicleta atravessando uma ponte. Então você sai de casa, com sua mochila nas costas, e ao chegar próximo da ponte, percebe que ela caiu da metade para frente. Neste instante, é pouco provável que você continue com sua bike pelo caminho, pois certamente cairá no rio. Então você percebe que o plano original já não funciona tão bem quanto quando estava saindo de casa. Agora, precisará replanejar e há algumas opções: atravessar a nado, tentar encontrar um barco, uma balsa, outra ponte, ou até mesmo, voltar para casa — pois atravessar o rio pode já não ser mais tão atrativo assim.
A síntese é: quando traçamos um plano, seja ele qual for, há considerável incerteza sobre o futuro (considere como espaço-tempo), portanto deve-se ter pouco apego ao plano, mas estar sempre preparado para replanejar, pois até mesmo afirmações como “mas é claro que o sol vai voltar amanhã”, que são asserções que podemos ter confiante previsibilidade, repousam sobre algum percentual, mesmo que ínfimo, de incerteza — o sol poderia implodir nesta madrugada devido a um fator desconhecido à ciência até o momento.
Procrastinação estratégica
No livro “Originais”, Adam Grant fala sobre a procrastinação estratégica como uma ferramenta capaz de permitir que tenhamos o tempo necessário para a geração de ideias inovadoras através da improvisação.
Quando planejamos tudo com antecedência, é comum ficarmos presos à estrutura que criamos, fechando a porta às possibilidades criativas que poderiam surgir em nossso campo de visão.
Ele cita também que grandes pensadores originais são e foram procrastinadores que não abrem mão do planejamento. Procrastinando estrategicamente, eles avançam de forma gradual, experimentando, testando e refinando diferentes possibilidades sobre suas ideias.
A diferença sutil aqui é quem domina quem. No caso da procrastinação estratégica, o pensador define a velocidade em que transita no território (considere aqui, também, como espaço-tempo), tornando mais ou menos elástico conforme vai tateando o terreno e não se deixa dominar pela letargia que leva à paralização.
Uma dupla de soluções práticas
Agora, com a compreensão de que existe considerável incerteza sobre o futuro e que todo e qualquer plano está sujeito a mudar após a execução do primeiro passo, o que se pode fazer para aproveitar das oportunidades que podem surgir enquanto se procrastina estrategicamente?
Priorização
Em um plano normalmente há algumas tarefas a serem executadas de forma que, ao completar a lista, o objetivo projetado seja atingido. No entanto, as tarefas não costumam se assemelhar no que diz respeito a esforço e valor (ou retorno).
Usando uma matriz de priorização simples, como a exibida acima, é possível identificar quais são as tarefas que apresentam maior valor e menor esforço para serem feitas primeiro, imediatamente. Na sequência, se deve trabalhar nas que possuem alto valor mas que o esforço é maior. Por último, deve-se atuar nas tarefas de menor valor e menor esforço. Aquilo que é de baixo valor e de alto esforço deve ser descartado.
Ter uma lista de tarefas priorizadas ajudará a identificar naquilo que é mais importante trabalhar primeiro, porém ela, sozinha, ainda não resolve outro problema, que é a ansiedade de começar em várias frentes diferentes ao mesmo tempo.
Essencialismo
O essencialismo propõe que, dado o contexto, devemos investir energia apenas na coisa essencial, aquela mais importante, e a imagem abaixo demonstra claramente:
O desenho à esquerda (Non-Essencialist) exemplifica que quando se aplica energia em diversas direções ao mesmo tempo, o progresso que se consegue é pequeno, em várias direções diferentes, quase fazendo com que não haja movimentação, ou seja, que não se saia do lugar. Em outras palavras, não há progresso aparente.
O desenho à direita (Essencialist) exemplifica que, ao contrário do anterior, quando se aplica toda a energia numa única direção, faz-se progresso considerável nela.
Unindo os pontos e atando os nós, finalmente!
Nem toda procrastinação é ruim. Aquela que domina as pessoas e os times faz mal, porém quando é escolhida conscientemente, se mostra estratégica e benéfica.
Há considerável incerteza sobre o desenrolar de um projeto ou plano e isso deve ser observado, tanto para que não se tome preocupações desnecessárias, nem para que se inicie trabalho menos prioritário primeiro.
É importante experimentar e estar atento às mudanças que acontecem nas pessoas, no ambiente, nas tecnologias, no mercado, etc., pois conforme se progride no plano, a realidade pode se mostrar diferente do que antes era apenas uma vista embaçada.
Acabativa (finalizar trabalhos iniciados) é mais importante que iniciativa (começar novos trabalhos) porque espalhar energia em frentes distintas (e quem sabe até, concorrentes) resulta em imobilidade.
Fontes e referência
McKeown, Greg; Essencialismo. Rio de Janeiro: Sextante, 2015;
Emmett, Rita; The procrastinator’s handbook. New York: Walker & Company, 2003;
Grant, Adam; Originais. Rio de Janeiro: Sextante, 2017;
Sutherland Jeff; Scrum: a arte de fazer o dobro do trabalho na metade do tempo. Rio de Janeiro: LeYa, 2018;