“OOOOOOOO, BICHA!”

Murilo Cepellos
Se Joga
Published in
7 min readOct 10, 2016

A famosa Ôla, que invadiu estádios mundo afora, não foi o único comportamento importado diretamente da terra de Chaves e Chapolin e adotado pelas torcidas brasileiras. O grito de “Ôôôôôô BICHA”, frequentemente ouvido a cada tiro de meta cobrado do Oiapoque ao Chui, seria uma adaptaçao do “Eeeee PUTO”, entoado, na mesma ocasião (e com a mesma conotação), durante as partidas de times mexicanos.

No México, o termo “puto” é utilizado de maneira pejorativa para insultar homens homossexuais e o primeiro goleiro a ser alvo dessa prática foi Oswaldo Sanchez, após trocar o América para jogar no rival Chivas Guadalara.

Os 30 mil torcedores mexicanos que invadiram o Brasil durante a Copa do Mundo, no ano passado, chamaram a atenção da Fifa ao utilizar a prática para insultar cada um dos goleiros que cruzava o caminho de La Tri, como é chamada a seleção do México. A entidade máxima do futebol mundial abriu um processo para elaborar uma punição à equipe, alegando que o ato não condizia com a postura adotada por ela contra qualquer tipo de discriminação. Porém, em comunicado oficial, o Comitê Disciplinar da Fifa alegou que os gritos “não foram considerados insultosos no contexto específico da partida”.

Data-se do dia 9 de março de 2014, antes mesmo do início da “Copa das Copas”, a primeira vez que uma torcida brasileira fez uso do “Ooooo Bicha” em uma partida transmitida para milhões de brasileiros pelos canais da TV aberta.

“A primeira vez que aconteceu foi em um Corinthians e São paulo, no Pacaembu, antes da Copa. O que mais me preocupa, de tudo, é o silêncio da grande mídia. Foi uma coisa que me chocou, porque era um momento de silêncio no estádio e deu para perceber no silêncio do Cléber Machado que ele tava desconfortável com aquilo, mas isso não foi abordado”, diz o jornalista e professor universitário Fernando Cesarotti, autor dos artigos “Até o dia em que seremos todos bichas”, e “Um bicha e milhares de idiotas”.

“Nessa partida, tinha aquela justificativa: ah, mas é o São Paulo, o São Paulo é o bambi. E hoje não é só mais no estádio do Corinthians ou do Palmeiras, é em 90% dos estádios. O jogo passa na Globo e o grito tá ali, sendo ouvido, e a grande mídia tá passando batido nisso. Tá passando um pano feio, do tipo não vamos entrar nessa discussão. Muita gente afirma que os preços altos dos ingressos nas novas arenas contribuíram para um ambiente mais agradável dentro dos estádios, mas é com esses ingressos caros que grita-se bicha em quase todos os jogos do Brasileirão”.

Comunidades e torcidas organizadas contra a homofobia

Movimento “Antifascista”

Foto: Reprodução

Da internet para os estádios. Nas redes sociais, boa parte dos clubes brasileiros já ganhou a sua versão “antifascista”, isto é, páginas criadas por torcedores a fim de incentivar a discussão sobre os preconceitos existentes no meio esportivo. Destacam-se as páginas palmeirense, corintiana, são-paulina e vascaína com mais de 6 mil seguidores cada uma.

“Não somos uma torcida organizada, não temos hierarquia nem pedimos inscrições para quem quiser ficar no estádio conosco. Somos um grupo de torcedores cansados desse rumo que o clube e o futebol num geral vem tomando. Somos totalmente favoráveis às provocações e à irreverência entre as torcidas, desde que estas não promovam ou perpetuem o preconceito.

O que muda na sua vida se você parar de ofender alguém usando ‘viado’, ‘macaco’, ‘vadia’ ou ‘traveco’? A resposta padrão é ‘nada, mas eu posso fazer o que quiser, é só no futebol’. Nós do grupo torcemos sem esse tipo de coisa e o futebol não perdeu a graça, não ficou chato por causa disso. Continua o mesmo de sempre, com o adicional de saber que não estamos ofendendo um gay, uma mulher, um negro ou uma pessoa transexual”, disse em entrevista ao blog Corneta e Amendoim, um dos membros da Palmeiras Antifascista.

Torcidas LGBT no Brasil

A primeira torcida organizada do Brasil formada por gays foi fundada em plena ditadura militar, em 1977, em Porto Alegre. A torcida terminou seis anos depois, tempo o bastante para conquistar o respeito e a admiração de gremistas e rivais. Segundo cálculos de seu fundador, Volmar Santos, a torcida chegou a ter 200 membros.

“No primeiro jogo em que fomos ao Olímpico, a surpresa e o desespero dos torcedores foi geral, tanto que queriam brigar e surrar os componentes da torcida por não aceitarem aqueles gays cantando, rebolando”, disse Volmar, em depoimento publicado no livro “Coligay, tricolor e de todas as cores”, de Léo Gerchmann.

Ainda na década de 70, surgiram, no Rio de Janeiro, a Flagay e, em Belo Horizonte, a Raposões Independente. Dezenas de comunidades Lgbts foram criadas em redes sociais nos últimos anos como a Bambi Tricolor, a Galo Queer, a Queerlorado, e a Palmeiras Livre, com milhares de seguidores.

Porém, ainda há receio por parte dos adeptos de levar o nome das comunidades para as arquibancadas.

“Nós vamos ao estádio, juntos e com outros amigos, mas nunca como Bambi Tricolor. Não seria seguro, infelizmente”, diz uma das fundadoras do grupo,em entrevista à BBC.

Em outubro de 2013, o jornalista Felipeh Campos causou polêmica ao anunciar a criação da primeira torcida organizada LGBT do Corinthians, a Gaivotas da Fiel.

“A minha ideia de montar a Gaivotas foi depois que um rapaz que eu namorava em 2013 foi agredido por uma torcida do Corinthians por ser gay, em plena Avenida Paulista. Se eu fosse simplesmente dar queixa na polícia, seria apenas mais um caso de preconceito, de homofobia. Fiquei pensando de que forma eu ia fazer com que a torcida prestasse atenção e visse que estava na hora de parar. Foi quando criei a torcida. Se eu tivesse ido à delegacia, não daria tanta mídia ou notícia como aconteceu”, comentou Felipeh, à Band, e apesar do grande alcance obtido na mídia na época, ainda não coseguiu tirar a ideia do papel.

O professor Flavio Campos, do Ludens/USP (Núcleo de Pesquisa sobre Futebol e Modalidades Lúdicas), não tentou criar uma torcida gay, mas promoveu a campanha “Vista sua Camisa com Orgulho”, que incentivava os participantes da Parada Gay a tirar o uniforme de seus times do coração do armário.

“É uma campanha mais criativa e divertida, contra a truculência da homofobia e até mesmo contra a perseguição de alguns setores da mídia sofrida por atletas de futebol que ou tentam assumir, ou são suspeitos de ter uma oritentação homoafetiva. Essa homofobia tão arraigada precisa ser combatida, enfrentada e criminalizada.”, disse Flávio de Campos, coordenador do projeto.

Apesar de diversas campanhas para a conscientização dos torcedores nos estádios pelo Brasil, as federações que regem o esporte no país ainda hesitam em se posicionar sobre a homofobia. No início de 2015, durante o lançamento da campanha “São Paulo contra o racismo”, o diretor de marketing da Federação Paulista de Futebol Jaime Franco foi insistentemente perguntado sobre o assunto, mas preferiu não comentar.

“Eu sou judeu. Conheço o preconceito. E a federação apoia a luta contra qualquer tipo de discriminação”, disse, ao site IG, evitando o tópico.

Lá fora

Gay Gooners

Uma das cinco torcidas LGBTs dos times da Premier League, o Campeonato Inglês de Futebol, a Gay Gooners tem todo o apoio do Arsenal, que fez questão de oficializar o grupo em 2013 e colocar uma faixa no estádio em homenagem aos torcedores. O grupo conta com mais de 200 membros e promove campanhas contra a homofobia entre os torcedores londrinos.

Em 2012, a Universidade de Staffordshire, na Inglaterra, conduziu uma pesquisa online com 2000 torcedores de futebol ingleses para saber se eles apoiariam a decisão de jogadores de sair do armário. Até então, nenhum atleta de destaque havia se assumido publicamente, desde Justin Fashanu, na dećada de 90. Os resultados mostraram que 93% das pessoas disseram que apoiariam, enquanto apenas 7% respondeu que ainda não havia lugar para os gays no futebol.

Arquibancadas americanas

A cidade de Los Angeles, nos Estados Unidos, foi a escolhida pelo jogador Robbie Rogers para voltar ao futebol profissional, no LA Galaxy, após se declarar gay publicamente em 2013. Mas nem sempre a cidade “mais multicultural da américa” soube lidar com a diferença.

No ano de 2000, em um jogo do Los Angeles Dodgers, no Dodgers Stadium, Danielle Goldey e Meredith Kott foram surpreendidas por seguranças que pediam que elas saíssem do estádio, devido ao fato de terem se beijado, momentos antes. Eles alegaram que aquilo era uma atitude não condizia com o local.

Quinze anos depois, a Kiss Cam, famosa nos estádios norte-americanos por focalizar casais, surpreendeu a torcida presente no Dodgers Stadium ao exibir dois homens. A reação da torcida mostrou que o estádio pode até ser o mesmo, mas algo mudou.

Confira o beijo aos 0:28 segundos do vídeo abaixo.

--

--