É solitário dar explicação

Rayanne Portugal
sedeorespeito
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5 min readJan 23, 2018

Foi naquele dia, saindo do Uber, que consegui formular por completo esse raciocínio. Éramos eu, três mochilas, um gorila de pelúcia e uma bebê de 1 ano dormindo profundamente, toda molezinha. Quase 23h, retorno pra casa pós-trabalho prolongado. Ela, que estava esperando na casa do pai, brincando agitada, não ficou nem 5 minutos acordada — pro conforto da mãe exausta. Na hora de descer, um diálogo breve estabelece a situação que me fez pensar por dias (e até agora):

- Alguém vai descer pra ajudar a senhora?, disse o motorista, bem preocupado.
- ‎ Não tem “alguém”, moço. Somos só nós duas mesmo, e sorri pra não parecer exagerada.

É aí que começa a solidão mais dolorida dos últimos meses: ter que me explicar com medo de soar reclamação ingrata, receio de me expor demais, de incomodar com meus problemas. Ter de sorrir ao final de cada frase.

Eu não estava triste. Nada naquela situação era território estranho pra mim, já estou acostumada com esse tipo de rolê. Na verdade, fiquei com pena do motorista por ele estar com pena de mim. Quase falei: relaxa moço, a vida é assim mesmo, a vida é boa, tá tudo bem, beijo, boa noite. Mas só fui embora com pena dele com pena de mim.

Onde quer que eu vá desacompanhada com minha filha, vou passar por dificuldades constantes e limitadoras. É inevitável. Moramos sozinhas, saímos sozinhas, nos resolvemos sozinhas. Não posso dizer que já me acostumei com as dores de cabeça que isso traz, mas estou muito bem adaptada. Temos amigos que, sempre que possível, ajudam bastante. Uma família presente e muito participativa. Mas, no fim da noite, saindo do Uber (e em tantas outras situações difíceis que já vivemos), ainda somos eu e ela.

A sobrecarga mental é, provavelmente, a maior dificuldade. Não tem um momento do dia em que eu passe mais de 20 minutos sem pensar sobre alguma rotina ou necessidade da Helena. Não importa muito se ela está comigo, na creche, na casa do pai ou com outro familiar, é sempre a mesma coisa. Mesmo quando ela está longe, continuo sendo responsável pela alimentação, pelo sono, pela saúde, pelo desenvolvimento intelectual e emocional dela.

Veja: não tenho dificuldade alguma em pedir ajuda (por mais que isso também seja motivo de conflitos com minha existência ainda tão humana) e minhas tarefas são bem divididas na rotina parental.

Mas o fato de morar sozinha com um bebê de 1 ano dificilmente é amenizado por decisões que eu tome ou tomemos em grupo.

Sempre falta tempo para comprar as frutas e legumes antes que a geladeira fique vazia. Falta tempo para cozinhar esses legumes ou transformar essas mesmas frutas em purê. Falta tempo para ler sobre os cuidados médicos dela, para lavar à mão os uniformes (depois que ela dorme e em tempo de secarem pro dia seguinte), para brincar com ela sem tanta correria. Falta tempo para acordar mais cedo e ajudar a regular o sono da noite (porque, nem mamãe, nem bebê, aguentam mais dormir todo dia depois da meia-noite). Falta tempo e energia para manter a casa limpa pra ela, que vive tossindo e alérgica.

Diariamente vou falhar em alguma das tarefas que listei com objetivo de manter organizadas as rotinas de trabalho + vida doméstica + vida pessoal + maternidade. E, entre essas falhas, algumas vão ser com a Helena.

Eu já aceitei e meu coração está em paz com isso. Bem no estilo Frozen, let it go, sigo dançando. Sei que faço meu melhor para ser uma boa mãe, para ser uma pessoa melhor. Ainda que seja dolorido sempre que falho, saber que faço meu melhor tem que bastar. Tento estar bem, principalmente perto dela. Faço terapia, meditação, me mantenho espiritualizada, tento não levar trabalho pra casa e tenho buscado outros temas para distrair a mente. Estar bem é um propósito com o qual tenho sido firme porque sei que não faz bem viver em função da maternidade.

Então, por que é tão difícil sair Uber e refletir sobre tudo isso?

Porque é solitário que só eu entenda. Nenhuma frase bem escrita é capaz de descrever como me sinto ao fim do dia. É solitário também que precise explicar, tantas e tantas vezes e, mesmo assim, muita gente nem queira entender. É difícil que exista empatia quando o ser humano é educado, desde a infância, a achar feio reclamar. E que estar infeliz sobre algum fator da própria vida seja resumido tão toscamente em reclamação.

Eu amo minha filha, de formas e maneiras inexplicáveis. Ela, sem dúvidas ou exageros, é a melhor coisa que já me aconteceu. Mas eu odeio cada uma das noites que dormi sem banho ou sem comida porque precisei cuidar dela e terminei exausta no sofá, acordando horas depois, ainda com a roupa do trabalho. Ou o dia que ninguém me atendia quando precisei comprar remédio de cólica para ela, de madrugada. Ou o dia em que o vizinho precisou me doar um vidro de Dipirona, quase vazio, para eu poder baixar rápido uma febre alta. Odeio ficar doente e ter medo de não acordar para amamentar, estar destruída para manter a alimentação da pequena nos conformes, o banho na hora certa. Odeio estar sempre mal vestida, despenteada. Odeio não conseguir falar das séries, dos livros, dos filmes do momento. Odeio me sentir culpada por isso. Odeio também me forçar a sair pra não me sentir perdida quando Helena está longe. Odeio me sentir insegura, frágil e reclamona. Quando começo a odiar as coisas que estou fazendo ou sendo, recomeço o joguinho e tento reiniciar o cérebro — ficar bem é o objetivo, né?

Odeio que eu não seja capaz de dar tudo para minha filha e para mim mesma e que, durante um período longo no ano passado, só o mínimo (manter ela alimentada, saudável e não perder o emprego) teve de bastar. O resto (inclusive eu e minha sanidade), ficou para depois. É solitário compartilhar isso tudo e me sentir mal enquanto explico. É sofrimento duplo.

Mãe solo não mata leões diários. Mãe solo faz amizade com os leões, aprende a amar os gatunos ariscos e respeitar o tempo dos bichanos. Mãe solo não pode cansar de alisar seus próprios monstros felinos.

Não se engane: materna solo não sonha em tirar férias da cria, que as outras pessoas sejam responsabilizadas pelas dificuldades que passa, que alguém seja punido. Também não quer pena ou que alguém magicamente resolva todos os problemas dela. Em geral, se não há abandono ou negligência (o que é meu caso), ninguém tem culpa sobre as dificuldades que uma mãe solo vive. Mas, ainda assim, nunca vai ser fácil. Sei disso e ainda amo ser mãe da minha filha, ainda que odeie os dias ruins.

Acho que mãe solo só sonha em se sentir menos só. Eu vivo sonhando com empatia e amizade. Em ter menos vergonha de pedir um favor, em ser menos observada quando estou com minha filha e todos ficam à espreita esperando eu falhar. Ninguém é responsável pelo meu sofrimento.

Assim, sonho com um mundo não tão pequeno, em que eu não precise me sentir só porque sofro.

Está tudo bem quando está tudo certo, ouvi uma vez e adotei para mim.

É, tá tudo bem ❤

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Rayanne Portugal
sedeorespeito

Me formei em jornalismo para poder escrever depoimentos no Orkut.