fotos: ahlan dias

Em busca do sol nascente

Me embrenhando pelo Ribeirão Cubatão, nas roças joinvilenses.

TEA cultura livre
Seiva de Viajante
Published in
8 min readSep 5, 2013

--

Na madrugada de 30 de agosto eu estava entrando em um pedacinho da zona rural norte de Joinville. Por um trajeto de duas horas, sem pressa e com o terreno favorável para bicicletas, fiz várias paradas para observar, anotar e fotografar.

Para se ter ideia, nessa região há mais 80 estradas e servidões rurais. Boa parte destas, são providas de vegetação nativa e agricultura familiar.

Durante minha saída, conheci cinco trechos de estradas, situadas na parte nordeste de Joinville. São elas: Da Ilha, Saí, Werner Weiss, Alvino de Souza Nascimento e Timbé — o que dá um trecho de mais ou menos 16km — até a volta aos limite urbanos.

Conversando rápido com o pessoal especializado da Prefeitura, o centro, mais todos os bairros da cidades, somam 30% da área total do município. Ou seja, tem muita coisa para conhecer.

· começando a rota

Na última e gelada sexta-feira de agosto,um senhor que trabalhava na rua me informou sobre como fazer para chegar ao CTG Chaparral — que era meu ponto de referência para achar o sítio dos irmãos horticultores Eliézer, Luiz e Mário Boos. Minha ideia era conhecê-los e aprender um pouco de agroecologia com eles.

Pois bem, fui até o fim da Rua Tenente Antônio João e pronto, a rota já podia começar. Eu estava na Estrada da Ilha — importante eixo de ligação com a região de Pirabeiraba.

Dali até o sítio que queria visitar, seriam sete quilômetros.

· pé no pedal

Era 4h da manhã e a Estrada Da Ilha estava silenciosa, úmida e envolta por uma tênue neblina. Parei a Distopia e me perguntei, “o que é que eu tô fazendo aqui?”. Queria ter uma ideia de nome para aquela história que eu estava pensando em registrar quando eu chegasse em casa.

A resposta veio quase que instantaneamente. Enquanto pedalava no acostamento, ao som dos bois pastando, um brado metálico e rasgado de uma moto despontava no horizonte. Foi quando o farol sinalizou a aproximação do motociclista — e logo pensei: “eu estou em busca… em busca do sol nascente! claro! fechou!”.

De volta ao percurso e com um pouco mais de confiança nas pedaladas,já não me sentia perdido naquela região, onde o aroma fresco do esterco às margens da estrada e o canto dos galos ao longe, eram familiares.

A neblina e o frio ainda me permitiam ver a lua minguando. Parecia um convite, a quem quer que fosse, para uma pausa na companhia do fogo — como lembra Pink Floyd, “(…) it’s good to warm my bones beside de fire”. Mas não era o momento, eu ainda estava no asfalto, debaixo de luzes fortes e longe de árvores — não dava.

Distopia engrenava macia, quando ouvi aquele ranger típico de uma bicicleta bem antiga se aproximar. Olhei para trás e lancei um bom dia ao ciclista que aparentava 30 anos e que vestia uma boina preta. Me sorriu como resposta e logo perguntou, “passeando por essas bandas, rapaz?”. Contei de forma amistosa meu objetivo e graças à ele, não fui parar em Pirabeiraba. Nossa prosa durou menos de cinco minutos.

Voltei cerca de 300 metros no trajeto, até me aproximar da placa que indicava a direção certa, “CTG Chaparral”. Graças à dica do ciclista, que já estava longe.

A Estrada Saí trazia um novo terreno: chão batido, pedregoso e com iluminação bem tímida. Uma estrada curta, pouco mais de um quilômetro adiante e ela já chega em uma encruzilhada.

Volta e meia, alguma acelerada longínqua de moto passava por ali, quebrando o sussurro do Rio Cubatão e o ruído das tábuas velhas da Ponte Baixa.

O frio, ora me deixava imerso no cenário soturno e amarelado das lâmpadas de mercúrio, ora atinava minha curiosidade urbana em saber quantos graus fazia. Mas ficar imaginando quantas infâncias foram curtidas naquela piscina natural me parecia mais interessante, enquanto minha respiração evaporava e levava embora as palavras.

Apesar dos lotes de beira de estrada serem mais amplos, a região tem várias casas — em virtude do rio. Mas o silêncio que pairava no caminho era tão presente, que os sítios pareciam abandonados. E minha cautela naquela hora era justamente manter a quietude — e não acordar os cães. Nessa, demanda Distopia estava super parceira — sussurrava sobre o chão batido.

Depois da pausa sobre o rio, encontrei a Estrada Timbé, que também logo se bifurca com a Werner Weiss — e finalmente, 2km sem nenhuma lâmpada por perto. Nesse trecho, as propriedades são mais extensas e a ausência de luminosidade artifical abre espaço para a escuridão do mato… Ah, como ela é aconchegante.

Era perto das 5h e a neblina já tinha dispersado. Estrelas e Lua coruscantes, compondo um cenário esplêndido. Nas duas margens da estrada haviam animais dormindo, mas um cavalo bem desperto me olhava e às vezes rinchava. Uma alegria silenciosa e pacífica me impeliu a saudá-lo com um bom dia.

O intervalo de contemplação foi maior que os anteriores e logo o frio começou a bater. A satisfação visual deu lugar a uma providencial necessidade de calor. Me pus a pedalar e buscar um lugar adequado para atear fogo.

Já estava na Alvino Souza de Oliveira, quando achei uma esquina convidativa. Casas distantes e sem sinal de cachorros. Apoiei Distopia no pequeno barranco que ladeava a estrada e logo percebi um item importante para montar uma fogueira ali: uma fila de pinheiros adultos. Dei uma tateada no chão e sem esforço achei galhos secos, pouco umedecidos e vários punhados da ótima palha de pinheiro, para usar de acendedor.

A fartura de gravetos foi animadora, e algumas folhas do bloco de notas ajudaram nas primeiras tentativas.

Aquecer mãos e pés, e brincar com a brasa, figurava um momento lúdico e de desfecho da noite

Olhar o fogo e seu movimento vivo e caótico, foi como tonificar minhas pupilas, que estavam dilatadas havia algum tempo. Soprar a brasa e sentir seu degradé fulgurante, de alguma forma, esvaziava meus pensamentos. A queima daquela matéria fértil e as fagulhas que fugiam como vaga-lumes no ar, me despiam de convicções e desejos. Eu transitava e transava com o transe.

O lusco-fusco não tinha atravessado ainda o horizonte, mas os pássaros já cantavam nas proximidades. Decerto que muitos ninhos são feitos ali nos pinheiros — os filhotes tagarelavam ansiosos. O primeiro bom dia na estrada foi de um cachorro, com cara de perdigueiro e arisco, tinha a pelagem amarelo queimado e o corpo levemente esguio. Me cumprimentou e logo correu pro seu sítio.

A linha de ônibus “2100 — Ribeirão do Cubatão” tem três horários diários, com com um itinerário de 29km

O outro bom dia também não foi verbal, mas em forma de sorriso. Fotografava a lua, quando me virei e saudei a mulher que caminhava com passos firmes em direção a um ponto de ônibus feito de madeira e eternit. Ela também disse oi e continuou andando, mas diminuiu os passos, parecia interessada por eu estar fotografando àquela hora — e naquele frio. Ela aparentava 40 anos e estava bem munida de roupas.

Eu ainda não sabia exatamente onde era a horta dos irmãos Boos. Arrisquei me informar, “você conhece o seu Eliézer?”. Ela vacilou com os olhos, “ah, sim! É um pouco mais pra frente, tá bem perto. É logo ali”, apontava apressadamente.“Me desculpa, tá? É que se eu perder esse ônibus, só tem outro meio-dia”. E acenou enquanto embarcava para a cidade.

Meu corpo já relaxado continuava aquecido. A brasa da fogueira brilhava há uns metros de distância e antes de montar na Disto, depositei os gravetos e tocos restantes no fogo. Imaginava que talvez todos eles estavam desejosos em queimar naquela brasa quentinha. Parti contemplativo.

O amanhecer naquela região me pareceu ter uma coloração única

A retomada foi lenta. Sentia que meu único relógio era o limiar do sol nas montanhas.

Dali minutos, avisto “Centro de Doma Rincão Crioulo”. Quando me aproximo da placa, percebo que cheguei ao destino. Ao fundo, uma horta vistosa e extensa, com aproximadamente 250m de comprimento, verdejante e serenada, às 6h30 da manhã.

Há dezesseis anos atrás, os irmãos Boos começaram juntos o tabalho manual de erguer as leiras, cavar os drenos e plantar as cercas vivas — itens primordiais para produção agroecológica de hortaliças

Seu Mário Boos, responsável pela entrega das 864 cabeças de alface daquela manhã, estava engatando o caminhão para partir quando cheguei na horta. Ele não demonstrava pressa, e logo me levou a seus irmãos, Eliézer e Luiz, que me serviram um generoso café com pão sovado e doce de leite.

Atualmente, para os irmãos, a principal função da cooperativa de produtos agroecológicos — a qual são filiados — é o “certificado de produtor orgânico”, que é emitido uma vez por ano. Segundo seu Eliézer, o selo é uma garantia de participação no fornecimento de alimentos para as merendas escolares da região — uma importante demanda para a atividade. A garantia no fornecimento representa uma segurança a mais para enfrentar imprevistos frequentes na lavoura, inclusive a especulação das redes de supermercados.

Eliézer, Luiz e Mário. foram os únicos dentre os onze irmãos que escolheram permanecer na agricultura.

O carro chefe deles é a produção de alface, que chega 1.260 unidades fornecidas por dia, na alta temporada.

Na ampla área de cultivo os três irmãos também trabalham com espinafre, cenoura, repolho, beterraba, brócolis, almeirão, chuchu e feijão mucuna.

Seu Eliézer, conta que sua vida, seja na alimentação ou no trabalho, é livre de agrotóxicos há muitos anos. Para isso, ele usa técnicas de agroecologia que aprendeu ao longo de sua carreira, na prática e junto a engenheiros agrônomos.

As vagens de feijão mucuna ficam expostas ao sol para secarem

A venda de alimentos é aberta à toda população. Os valores são similares aos dos mercados. Por exemplo, R$ 1 a unidade do alface ou almeirão; R$1,5 o ramo de espinafre, R$ 2 a cabeça de repolho e R$ 4 o brócolis.

____

+ para saber mais

  • Veja o trajeto até o sítio dos irmãos Boos no Google Maps.
    Link
  • Atualmente, 24 produtores agroecológicos compõem a cooperativa regional. Segundo seu Eliézer, a comunidade tem pouco contato com a população em geral, e ele reitera que há uma carência de divulgação da atividade da cidade.
    Fone: (47) 9141·1102
  • A Fundação 25 de Julho procura unir as atividades das famílias agricultoras e coloniais de Joinville.
    Fone: (47) 3424·1188 | Site
  • Se você tem interesse em entender o que é agroecologia, entre em contato com o Instituto Giramundo. Eles coorganizaram o III Encontro Internacional de Agroecologia, em Botucatu. Personalidades importantes para o movimento, como Vandana Shiva, João Pedro Stédile e Milton Rondó participaram do evento.
    Fone: (14) 3354·7868 | Site

____

+ fale com o autor

  • Correções, dúvidas e sugestões de textos?
    ahlan.dias@gmail.com

____

Este conteúdo é de domínio público, sob a licença Creative Commons.

--

--