O som escuro das máquinas

TEA cultura livre
Seiva de Viajante
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3 min readJun 26, 2014

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A noite de sábado se transformava em domingo no canto da tela iluminada do computador. Do décimo segundo andar de um prédio que ladeava um matagal de eucaliptos e bambuzais cantadores, um túnel de vento urbano trazia o som dos motores viajando a quilômetros dali.

Já não era mais horário de rodízio de placas em São Paulo. Os arranques agudos e esticados das motos marcavam um compasso livre e um volume preenchido, constante. Entre um vento e outro, a rara buzina ou o ronco pesado, típico de motores antigos engatando marcha, ensaiavam aos ouvidos um ritmo misterioso — onde estaria o início ou o fim?

Marginal Tietê, vista da alça de acesso à ponte Casa Verde

Tais sinais já eram ecos. Seus condutores, absortos, eufóricos, cansados ou sonolentos, seguiam longe, rente a alguma alça de acesso ou pista expressa.

O som viajava entre as milhares de moradas que uniam Marginal Pinheiros, avenidas auxiliares, pontes e corredores. A cada máquina que passava fugaz por aquelas faixas instigantes na madrugada, uma nova carga de som se manifestava em movimento. As ondas, umas sobre as outras, procuravam por fluxo que rumasse um vetor distante, onde houvesse mais espaço.

Buscavam por um fim como um rio busca por sua foz. Os ruído das máquinas tateava o amplo ar noturno de Butantã. Queriam desaguar no silêncio.

Vital Brasil, Corifeu, curvas, declives. Mais alguns quilômetros de leitos sonoros e a esperança é despertada por um novo afluente: Politécnica. Fluxo veloz rumo a Ponte do Jaguaré e uma pergunta ligeira, “sentido norte ou sul?”.

Subindo a Avenida Rebouças

Indeciso, o som desviava das janelas, portas, quintais e praças. Eram opções quietas naquela hora, mas a escala era humana. Na voada apressada e constante, sem se demorar em lugar algum, as ondas emanavam uma complacência pelo sono de seus criadores.

Na iminência de raiar o dia, o som acelerava sua velocidade de viagem, ao ponto de tornar-se rarefeito, já sem forma, espalhando-se por onde a cidade abria os olhos, onde os cruzamentos se reativavam.

Cintilando na imaginação de milhões de habitantes ainda despertos no lusco-fusco madrugueiro, as luzes do horizonte esmaeciam.

Naquele dissipar ligeiro, entre segundos vazios, o som peregrino se debandava sem deixar rastros, sem nos causar memória afetiva.

Seu afeto se doou som do mistério.

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