“a dádiva de ler o evangelho dos corpos”

A poesia de Chris Ritchie

cassandra
selohestia
5 min readJun 24, 2022

--

As quatro estações

Vivaldi só ouvia a tempestade
e o escaldo que a precede.
Ele padre decerto não soube
que o tesão com verão se mede.

temaki sem cortes

deslizar a porta
abrir o quimono
afiar aaaaa faca
desafiar o pudor
umedecer as mãos
escorrer nas coxas
no sal, quarar a dor
florir os gemidos
wasabiar os gostos
alinhar oss lábios
oshiboriar o tigre
prendê-lo a ventosas
decepar os peixes
gelar aaaass ovas
moldar ooo arroz
enrolar aass algas
apertar vontades
agradar sentidos
matar as fomes
sobre o tatame
aaaaaaa dois

e o mundo

imagino
ou me lembro
(ao cérebro dá no mesmo)
e logo sinto
teu pau grosso
em minha boca
como um sorriso histriônico
também ao cu e à boceta
os nomes do corpo
que animam as populações
graças a deus
que nos deu imaginação
para padrões e descobertas
espírito, natureza, o diabo
não importa do que chamem
o que nos acopla e desacopla
em perpetuum mobile
o que nos rola nas espirais
da razão dourada
apertados no miolo do girassol
prestes a explodir em pólen
iluminando o ar e o solo
não há alma que alcance
esse sentir sem pensar
nem concreto que o assole
enquanto a vida for
temos esse lugar de ser
uns com os outros
e o mundo

O pensamento dentro da rosa

O homem de terno branco chegou cheirando a rosa. Não de perfume em vidro,
nem de buquê ou água, mas como rosa de carne de onde começa o mundo.

Do canto do balcão, em meio à fumaça dos Robustos e Maduros, entre outros Dannemann, eu vi sua boca brilhar, ainda com gosto de flor.

Não se lavou, está claro. “Do amor não me lavo, eu levo”, o ouvi dizer. Esse é o perfume da vida na Terra, leio em seus olhos, sem ele me ver.

A batida cessa. Ele demora os lábios na borda da taça. Será que ouve o meu coração?
Seus dedos tamborilam, a música recomeça, sou pernas e braços na sua canção.

Seu pensamento é brasa e está pronto pra me marcar. Mas se ele me olha,
não vê que me molha, eu rosa de enfeite no solitário a suar.

Do meu caule me inclino, curvando os espinhos pra ele ver que o meu pensamento morno, úmido e lento, da sua boca, espera o céu.

Poema explícito

Minha língua de saliva ensaboa
Tua barriga no limite do pesponto,
De bordo a estibordo e o umbigo.

Como um animal adestrado,
Abro teu botão com os dentes
E desfaço o feche-éclair num sorriso.

Na hora das mãos selvagens,
As roupas vão ao chão,
E encaro teu pau de frente.

Me enche os olhos e a boca
Já cheia d’um gosto amadeirado,
Lambo a tua virilha, o teu escroto.

Tu me lambes bem, bem e contente,
E cravamo-nos os dedos nas carnes
Até nosso gozo jorrar sonoro e reluzente.

Samba-canção

Alça de renda alva
sustenta pouca inocência
na palma de cada mão.
Embaixo, a rola máxima
samba solta e convida
a moça a descer o tom.
Ela abre tão bem a boca,
assenta a língua
e amplia o ah da canção
cuidando de dedilhar
sua grave melodia
de andamento lento
N-O-T-A por N-O-T-A
em seu violão.

A paixão

Ele não me ama mais nem menos
do que todas as mulheres do mundo,
as vivas e as belas mortas –
Helena de Troia, Joana D’Arc, a Maja Nua,
a jovem junkie congelada no parque.
Mas ele é o meu Cristo do amor infinito
e pau eternamente duro
não me importa quantas tenham sido,
ou quantas ainda serão.
Na graça infinita do instante
a salvação é um presente
tão desnecessário quanto inútil,
arrancamos cravos, removemos espinhos,
desinventamos o pecado e a solidão.
No meu arrebatamento desconfio,
pode ser que ele me ame mais
do que todas as mulheres do mundo,
as vivas e as belas mortas —
Safo poeta, Madalena, Monroe estrela,
Iracema, a Rosa Luxemburgo.
Ele me dá e faz crer que são meus
os verdes campos, o leite, o mel,
a dádiva de ler o evangelho dos corpos
e a luz no que dizem ser escuridão.

sem título

o mundo como o entendo,
convexo, redondo com o céu em camadas
como um mistério em que se deve acreditar
porque é científico e conforme,
as nuvens de nomes desvairados que as desmancham
no sopro de quem ousa dizê-los,
a crosta de manta sublime ou devastada por asfalto
e os para-raios como esconjuros no topo dos edifícios,
o oceano indivisível avolumado sobre a costa,
erodindo, salgando, umedecendo-a,
esse mundo como o entendo
se abre, vira linha e se fecha pelo avesso,
esfera de magma, crosta de fogo
que amalgama os metais as rochas, os elementos
numa liga ardente que avança e vai, vai, vai
crescendo, avermelhando o espaço e a vida
enquanto lá dentro os rios fluem secretos,
o ar se emulsiona e a gente já nem existe
quando enfia o pau na boca,
na vagina, no reto e os seus dedos
me seguram como se eu ainda fosse sólida.

Foto: Jarid Arraes (Parque da Água Branca, SP).

Chris Ritchie nasceu em Santos-SP, em 1967. Poeta, escritora, tradutora e professora, cursou Letras na USP e por lá se tornou Mestre em Poesia (1997). Tem Diploma em Gestão Educacional na International House, Londres (2001), e certificado do CLIPE da Casa das Rosas (2015). Publica poesia e prosa desde 2015, mas escreve desde 1976. É sócia da Ritchie & CO., ativista literária do Livro que Marca e poeta do Fazia Poesia. Conheça o trabalho da autora aqui.

--

--

cassandra
selohestia

perfil editorial da revista de arte e literatura cassandra