Tornar-se negro; descobrir-se escritor

Wesley Rocha
seloitan
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4 min readApr 14, 2021

Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrisaveis (Carolina Maria de Jesus).

Falar do processo de descobrir-me escritor é, necessariamente, falar do processo de tornar-me negro. Afinal, há uns 10 anos, talvez não tivesse a “audácia” de participar de uma seleção de textos de autoria negra, pois não me via como homem negro e jamais diria que pudesse escrever ou produzir textos com potência, reivindicação e afirmação de uma ancestralidade africana.

A universidade pública e de qualidade teve um papel fundamental neste processo de autoafirmação, mas não só ela. Em 2012, quando ingressei na Universidade Federal de Mato Grosso, ainda não me reconhecia como pessoa negra, recebi com estranheza os convites para participar de movimentos negros e, além disso, ainda não havia tido contato com escritores(as) negros(as). Assim, com este primeiro ato de resistência (sim, estudar é um ato de resistência; é uma das formas de rejeitar o lugar de subalternidade delegado às pessoas negras), comecei a ter contato com movimentos negros e com produções literárias negras. Dessa forma, a partir da socialização com os nossos e da afetividade negra, comecei a perceber todo o processo ideológico que tenta aprisionar as pessoas negras num lugar de “não saber”. Esse processo é violento e tenta, das maneiras mais sutis às mais violentas, tirar da pessoa negra a possibilidade de explorar todo o seu potencial. Portanto, tornar-se negro tem a ver com essa guinada, com essa tomada de consciência de todo esse projeto de nação racista em que estamos inseridos e no qual a nação brasileira foi forjada.

A partir deste processo de tornar-me negro, de reconhecer e afirmar a minha identidade por meio da coletividade (indispensável), comecei a ter contato com escritoras negras, tais como: Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, entre outras. Mulheres negras que fizeram da escrita um dos modos de contrapor a hegemonia branca e também um dos modos de resistência e de afirmação no mundo.

Ao ler as obras dessas mulheres negras, estava lendo/recordando/buscando na memória as trajetórias das mulheres negras que, com toda garra do mundo, criaram a mim e meus irmãos, lembrei da luta de minha mãe, de minha avó, lembrei da resistência de minha bisavó, as matriarcas de minha vida, sem as quais não seria o homem que sou e nem teria chegado onde cheguei.

Hoje, graças à coletividade e às matriarcas de minha vida, me reconheço como homem negro e, ainda, como escritor. Foi um processo dolorido, pois reconhecer as engrenagens da colonização que continuam atuando e atingindo nossas vidas não é tarefa fácil, é dolorido, faz sangrar, mas também dá fôlego, fôlego de vida, impulsiona e gera gratidão a toda ancestralidade que resistiu, lutou, se (re)afirmou no mundo, ousou contar sua história, ousou fazer da literatura um dos instrumentos de luta, de ressignificação de uma história mal contada e, assim, abalar as estruturas dominantes que a branquitude quer manter e, nas palavras de Conceição Evaristo, incomodá-los em seus sonos injustos.

Cada poema que escrevo traz em si um convite para se reconhecer como pessoa negra, um convite para ancestralidade africana, um convite para afirmar que a energia ancestral, principalmente das mulheres negras, nos impulsionou e nos impulsiona. Tudo o que escrevo é repercussão das marcas, das dores, das lutas e das vitórias de minha/nossa ancestralidade. O que escrevo é resistência, é (re)afirmação, é insubmissão e, sobretudo, gratidão.

Cada publicação do Selo ITAN traz em si um ato de resistência, de evidência da existência e afirmação identitária. Os textos produzidos por nós, pessoas negras, trazem à tona questões que perpassam nossas vivências, nossa coletividade e valendo-se, muitas vezes, das memórias (re)afirmamos nossa identidade, resistência e luta, via literatura. Assim, pela via literária, deixo/deixamos no mundo o meu/nosso traço inscrito, deslizando entre o passado e presente e me/nos projetando no futuro.

Portanto, participar da 1ª Edição do Selo Itan de Literatura Independente e ter um poema publicado foi uma experiência extremamente gratificante e, ao mesmo tempo, uma confirmação de que nós podemos e devemos fazer literatura. Além disso, é acolhedor, afetuoso, é pura potência ter a nossa escrevivência publicada juntamente com diversas pessoas negras; é a coletividade preta em sua potência subversiva.

Publicação na 1ª edição da revisa. Fonte: Revista Itan, Edição 1 (2020). Disponível em: https://bit.ly/revistaitan1ed

As inscrições já estão abertas e seguem até o dia 06 de junho. A 2ª Edição irá aceitar poemas autorais e inéditos que abordam o tema Política, ambiente e subjetividade. Para saber mais, você pode ler na íntegra o Edital 01/2021 aqui.

Assim, na condição de membro da organização da 2ª Edição da revista, lanço o convite às pessoas negras que escrevem e/ou desejam escrever para romper os silêncios e transgredir as fronteiras. Parafraseando Bia Ferreira, na música Cota não é esmola, o seu texto nesta construção coletiva “[…] é a voz que ecoa no tambor […] porque o povo preto veio para revolucionar […] não deixe calar a nossa voz não […]”.

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Wesley Rocha
seloitan

Escrever é o movimento de dança-canto que o meu corpo não executa, é a senha pela qual eu acesso o mundo (Conceição Evaristo).