Da desproletarização do futebol
Ou como a paixão virou clientela também no menor, mas não menos importante, estado do Brasil*
Na quarta-feira, 16, o Flamengo do Rio de Janeiro vem a Sergipe para enfrentar o Confiança, pela 1ª fase da Copa do Brasil. O confronto, que provavelmente ficaria marcado na história do clube do Nordeste apenas pelo enfrentamento com o clube com maior número de torcedores do país, já está nos anais do esporte bretão no Estado por um fenômeno muito mais importante, para não dizer “grave”, que já vinha se alastrando em outras praças. O torcedor de futebol como conhecíamos, morreu. E renasceu como cliente.
Pois, vejam se estou a exagerar. Desde que o confronto foi anunciado que não se falou em futebol na capital Aracaju, seja nas rodinhas de conversa no bar, seja nos grupos de whatsapp. Não se discutiu se a entrosada dupla de ataque Bibi e Leandro Kível seria capaz de derrotar a ainda contestada defesa rubro-negra, se o técnico Muricy Ramalho iria aproveitar para colocar algum ponta nas costas do lateral ofensivo Ney Maruim, ou mesmo se o Flamengo seria capaz de eliminar o segundo jogo do confronto no Rio, caso ganhe por dois gols ou mais de diferença.
Do contrário, se falou bastante em dinheiro. Não se sabe se por fontes internas do próprio Confiança, por outros interesses ou apenas para puxar assunto besta no zapzap, começou-se a espalhar que os dirigentes do clube poderiam vender o mando de campo, por quantias milionárias, frustrando a torcida de casa do provável último momento de projeção nacional do futebol local. O pior é que o dilema fazia bastante sentido racionalmente, afinal, se as cifras de 3 milhões de reais se confirmassem, o clube azulino garantiria que o ano de 2016 terminasse no azul…
Aproveitando o trocadilho infame, abro parênteses para explicar o fator simbólico disso tudo (com o mínimo de clubismo possível, já que torço para o clube vermelho, o maior de Sergipe, e que leva o seu nome…– pronto, parei). A Associação Desportiva Confiança nasceu na década de 30, na fábrica Confiança, do Bairro Industrial, Zona Norte de Aracaju, o que fez com que o clube e seus torcedores — apesar de vestirem-se de azul — ficassem conhecidos como proletários. Bairro que ainda hoje tem problemas graves de infraestrutura e sofre com o descaso do Estado.
Volto ao século XXI para adicionar ainda mais tempero neste caldo polêmico. Dos torcedores mais coléricos contra a venda do mando de campo estavam não os torcedores azulinos — que até aceitariam o dinheiro em troca de um time mais competitivo para o resto do ano, principalmente na terceira divisão do Campeonato Brasileiro -, mas os adeptos locais do Flamengo do Rio de Janeiro. Não vou entrar aqui nesta polêmica eterna dos torcedores “mistos” — que escolhem clubes principalmente do eixo RJ/SP para torcer, em detrimento das equipes locais — mas posso dizer que estes ocupariam mais da metade dos assentos do estádio Lourival Baptista, que eu me recuso a chamar de “Arena” Batistão (outro capítulo à parte).
A possibilidade de transferir o jogo para Brasília, Salvador ou sabe lá onde cresceu tanto que o prefeito e o governador se viram obrigados a intervir e a interceder junto ao “coroné-presidente” da Confederação Brasileira de Futebol, até para garantir o circo ao povo, em tempos em que o pão anda tão complicado. Bateu-se o martelo: o jogo não só aconteceria em Aracaju, como se daria na véspera de aniversário de 161 anos da capital sergipana (e teve ex-treinador da Seleção Brasileira que disse que futebol e política não se misturavam…talvez ele suspeitasse ser o mais esperto de todos, ou que fôssemos todos imbecis).
E o tal torcedor proletário? Bom, para garantir a tal “viabilidade financeira” do clube no resto do ano sem essa bolada garantida, a conta teria que ficar com alguém…Duas semanas antes do jogo, a diretoria do Confiança anunciou o plano de venda dos ingressos. Para os sócio-torcedores — esta nova casta do futebol brasileiro — que conseguem pagar 100 reais por mês ao clube e está em dia, o ingresso do setor central ou das arquibancadas está garantido; para os que pagam 50 reais, arquibancada garantida; e para os que dão 20 reais mensalmente, o preço de 50 reais pela entrada comum.
E na bilheteria? Além da fila garantida no calor, o torcedor proletário comum, do Flamengo ou qualquer outro que queira garantir o seu assento entre os cerca de 12 mil disponíveis hoje em dia (que já foram 45 mil em 1969, sabe lá como) terá de desembolsar 200 reais na arquibancada, ou 400 reais nas cadeiras centrais, com a “cortesia” de receber mais um ingresso de cada, se pagar o valor inteiro. Em tempo, o valor das entradas inteiras para a arquibancada no Campeonato Sergipano é de 40 reais, ou, cinco vezes menor do que nesta partida.
Percebe-se que o futebol profissional atual, assim como a maioria das inovações e benesses do sistema capitalista, é designado para uma certa classe de determinado poder aquisitivo usufruir, e o resto, desejar. O torcedor de hoje precisa se enquadrar como sócio, como cliente do próprio clube de coração, para não ser escanteado destas novas Arenas, antros de regalia e de exclusão. O Dragão do Bairro Industrial segue a receita da elitização do espetáculo para, quem sabe, alçar voos cada vez maiores, ao mesmo tempo em que perde a própria identidade histórica, trocando o torcedor-aficionado, que acompanha o clube sempre, pelo torcedor-consumidor, que exige qualidade do produto-jogo, ou seu dinheiro de volta… O proletário, que já não tinha os meios da própria produção, agora perdeu o acesso à própria paixão.
- Luiz Paulo C. Teixeira é mestre em Psicologia Social, torcedor do Club Sportivo Sergipe e ainda resiste como jornalista (neste caso, sem clubismo).
Gostou da ideia? Compartilhe!