A Escravidão Moderna da Copa de 2022

Documentário mostra como é a vida dos operários no Catar, que aceitam suas correntes de ferro e sonham com a distante liberdade

Fábio Felice
Sem Firulas
3 min readApr 24, 2017

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Copa dos Trabalhadores, documentário em exibição no Festival É Tudo Verdade 2017

Desde que foi escolhido como país-sede da Copa do Mundo de 2022, o Catar é alvo de denúncias sobre as degradantes condições de trabalho impostas aos operários responsáveis por levantar estádios, rodovias, prédios, shoppings-centers e pasmem, até cidades inteiras. A apuração jornalística dos fatos ocorridos por aquelas bandas do Oriente Médio não é tarefa fácil, cabendo a guerrilheiros da notícia como os do The Guardian e da BBC a missão de descobrir e contar ao mundo o que rola por lá. E muitos acabam presos.

É por isso que o documentário Copa dos Trabalhadores (exibido no Festival É Tudo Verdade 2017) tem grande importância social, futebolística e cultural. O diretor americano Adam Sobel conseguiu algo até então inédito na busca por registros e informações: dar voz aos operários. Com uma equipe acostumada a filmar no Catar, Adam aproveitou um torneio de futebol entre os trabalhadores da Copa 2022, promovido pelo Comitê Organizador, para mostrar como vivem as ferramentas humanas daquele enorme canteiro de obras em forma de país.

Em sua maioria composta por imigrantes africanos e asiáticos, os operários trabalham até 12 horas por dia, 7 dias por semana e tem passaportes e vistos controlados pelas empresas. Ou seja, não conseguem sair do país — muitos não veem a família há mais de 5 anos.

Kenneth e o time da GCC

O documentário acompanha o dia-a-dia dos operários da construtora GCC durante a realização da Workers Cup, apresentada pelo Comitê Organizador como parte de um programa de integração entre os trabalhadores da Catar 2022. Nada mais do que uma cortina de fumaça para a imprensa repercutir e a FIFA dormir tranquila.

O capitão do time da GCC é Kenneth, ganês de 21 anos que foi para o Catar com o sonho de virar atleta profissional por lá — o trabalho nas obras da Copa seria apenas temporário. Como tantos outros, ele se diz enganado por seu "empresário". Por linhas tortas, a Copa dos Trabalhadores acaba sendo a oportunidade de Kenneth fazer aquilo que tanto gosta: jogar bola.

É curioso perceber como o futebol é, ao mesmo tempo, vilão, solução e sonho dos operários da GCC, personagens do documentário:

  • Eles estão presos a uma competição futebolística, já que trabalham em condições escravas na concepção dela, sem previsão de um futuro próximo em liberdade;
  • Mesmo assim enxergam no Mundial a saída para grande parte dos problemas da vida. Os salários, mesmo baixos, são infinitamente maiores do que aquilo que poderiam estar ganhando em seus países de origem;
  • E possuem sentimentos lúdicos em relação ao esporte bretão. Paul, queniano, usa camisas de clubes ingleses todos os dias. Umesh, indiano e fã de Wayne Rooney, batizou os filhos de Robin e Rooney. Samuel, ganês, mentiu para o pai ao sair de casa, dizendo que jogaria futebol profissional no Catar. Sem falar em Kenneth, que segue sonhando em virar jogador e espera que olheiros assistam à Copa dos Trabalhadores.
Paul, torcedor do Manchester United

Toda essa mistura de percepções é encarada com plena consciência pelos envolvidos. Num dos melhores momentos do documentário, Paul, Kenneth e Padam, nepalês, conversam sobre o conceito de liberdade, durante uma refeição. Eles sabem que não a possuem (falam, inclusive, em "escravidão moderna"), mas sonham com ela. Paul vislumbra um encontro com uma garota conhecida na internet, Kenneth sente saudades das comidas de Gana e Padam pede para a mulher cantar para ele pelo telefone celular. A liberdade não existe, a esperança segue imortal e a bola gira como o globo, para que se dê tempo ao tempo.

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