A Síria e as ambiguidades sentimentais do futebol
Às portas da classificação para a primeira Copa do Mundo, a seleção síria expõe a ruptura social causada pelo conflito militar em sua terra
Um país devastado pela guerra civil, centro de um jogo de xadrez geopolítico entre Estados Unidos e Rússia — a um custo humano incalculável, consegue manter viva a esperança de se classificar para o que seria a sua primeira Copa do Mundo. A Síria tem tudo para escrever uma das mais belas páginas da história do futebol em 2017. Mas como em toda beleza, há a imperfeição. E muitos pontos a se refletir.
É necessário, inicialmente, fazermos uma breve introdução ao conflito que se alastra no país, para podermos aprofundar melhor a sensação ambígua desse possível feito. Em 2011, motivada pelos ideais do movimento depois rotulado como Primavera-Árabe, parte da população síria demonstrou sua insatisfação com o governo de Bashar Al-Assad e iniciou protestos pacíficos pelo país. No decorrer do tempo, porém, os protestos se intensificaram e acabaram formando dois grupos militares: as forças aliadas a Bashar Al-Assad, com as quais juntou-se a Rússia, e os “rebeldes” (aqui, para manter a imparcialidade, usaremos “oposição”), apoiados pelos Estados Unidos. Neste conflito, já suficientemente complexo, ainda surgiu um terceiro elemento, o autointitulado Estado Islâmico (ISIS), que apesar de relevante para o contexto, não é objeto desta reflexão.
O conflito na Síria evoluiu durante os últimos seis anos e provocou sequelas em todas as camadas do tecido social, desde a concepção de família ou vida, passando pela forma de se enxergar um Estado, até aportar em questões mais triviais, como o futebol.
O esporte bretão é uma manifestação popular espontânea e que muitas vezes é tido como reflexo de uma condição social existente. Por isso mesmo, tudo que envolve futebol em conflitos como o sírio, em especial quando se trata de representação nacional por meio de seleções, deve ser estudado de modo detalhado, para compreender de fato do que se está tratando.
Na Síria, a questão entre futebol e conflito esteve sempre intimamente conectada. O futebol é visto pelo governo de Bashar al Assad como uma das principais ferramentas de softpower para a legitimação do regime. Não por outra razão, durante os anos de guerra, como argumenta reportagem da ESPN americana tratando sobre o futebol no país durante o conflito, ao menos 51 jogadores da primeira e segunda divisão do futebol sírio foram torturados, mortos ou estão desaparecidos. Firas al-Khatib, capitão da seleção síria, fazia boicote contra a seleção de seu país até pouco tempo, por considerar que vestir sua camisa era dar apoio à “seleção do regime”, não ao “povo sírio”.
Quando refletimos sobre uma seleção nacional, a primeira reação é considerá-la como representante de uma unidade nacional. No conflito sírio, como pode ser observado, esta unidade talvez não exista. A Síria é essencialmente dividida em dois grupos (desconsiderando aqui o ISIS como uma vertente de representação síria), cada qual fiel a um dos lados do conflito armado.
Quando se trata de nacionalidade, via de regra, aborda-se o vínculo com a nação da terra de nascimento, independentemente de quem a governe. O ponto no conflito sírio é que a seleção nacional, em tese de todos os sírios, perdeu a capacidade de representar a totalidade dos indivíduos nascidos em solo sírio e tornou-se figura representativa de um dos lados da história, o de Bashar Al-Assad.
Uma seleção síria na Copa do Mundo, feito inédito para o futebol do país, pode possivelmente não significar uma sempre intuitiva relação de representação entre nação e nacionais. Não se pretende aqui dizer que comemorar a recente classificação para a repescagem das eliminatórias da Copa do Mundo esteja essencialmente errado ou tampouco que correto está quem torce pelo pior para a seleção síria. Maniqueísmos à parte, a questão de uma eventual seleção síria na Copa do Mundo não pode ser enxergada de modo simplista, tratando a população síria como uma unidade indissolúvel. Tanto os apoiadores do governo de Bashar Al-Assad quanto os oposicionistas têm suas razões para contestar ou comemorar os avanços da seleção nacional. Rotulações, neste caso, mais atrapalham do que esclarecem.
Futebol e política estão sempre intrinsecamente ligados, e quando se está tratando de um conflito com as consequências sociais e humanitárias como as produzidas pela guerra civil na Síria, tomar uma posição sem antes compreendê-la com a devida profundidade é arriscado e incerto.
No meio deste fogo cruzado sobre o que representa a já vitoriosa caminhada do país rumo à próxima Copa do Mundo, o capitão Firas Al-Khatib, ao comentar o seu retorno à seleção síria, escancara a dualidade existente entre as concepções de nação e povo na Síria: independente do que aconteça, 12 milhões de sírios vão me amar e outros 12 milhões vão querer me matar.