Da chacota ao cult: a história por trás do manto mais legal de todos os tempos

Guilherme Dorf
Sem Firulas
Published in
9 min readMay 25, 2016
Alexi Lalas, década de 90, Estados Unidos e uniformes estampados. Cult é pouco!

Dentre as inúmeras confusões mentais que fazemos tentando problematizar o futebol, talvez a mais evidente delas seja a adoção do termo “futebol moderno”.

O termo, utilizado a torto e à direito, passou a ter diversos significados e interpretações distintas. Proibição de sinalizadores, chuteiras coloridas, elitização dos estádios, camisa pra fora do calção, uniformes monocromáticos, jogadores midiáticos, excesso de patrocinadores. Coisas tão distintas são jogadas dentro de um mesmo balaio, por vezes, banalizando discussões tão ricas.

Por banalizar, perdemos nossa “bússola técnica” criando certezas incorretas e tendo dificuldade para classificar iniciativas.

Alguns dizem que se Pelé, Maradona e Cruyff se jogassem nos dias de hoje jamais teriam Instagram ou usariam chuteiras coloridas. Impossível saber, mas considerando que Cruyff foi um dos maiores garotos propaganda da Puma, Pelé aproveitou toda e qualquer proposta publicitária e Maradona tingia sua juba, chances são que eles seriam grandes expoentes do que convencionou-se chamar de moderno.

Cruyff atuando com um patrocínio pessoal da Puma, Maradona com seu cabelo loiro e Pelé em um anúncio.

Mais complexo ainda é o lançamento das chuteiras pretas Umbro. Ao incorporar o discurso do ódio ao futebol moderno para vender uma nova chuteira, a empresa deve ser classificada como anti-moderna ou hipermoderna?

Blackpack da Umbro dividiu a opinião dos consumidores.

De todas as tentativas de definição sobre o que é ou não moderno, a que mais me agrada é a que compreende que o negócio tem que fazer parte do futebol, mas os interesses comerciais nunca podem estar acima da cultura do esporte. Tudo o que me incomoda no jogo como é hoje, decorre disso: um jogador que usa chuteira colorida apenas para aparecer ou por pressão do patrocinador, um clube que expulsa um torcedor assíduo de sua casa preferindo receber um torcedor casual, um parceiro comercial que contrata um jogador para o clube e interfere nas escalações técnicas e por aí vai.

Quando eu estabeleci essa definição para mim mesmo, tudo parecia mais claro, até eu me deparar com algo que eu preferia não ter visto. Ao pesquisar sobre o uniforme dos Estados Unidos na Copa de 94, descobri que uma das minhas peitas preferidas, possivelmente também é a camisa mais moderna de todos os tempos!

A segunda parte desse texto é uma tradução livre da matéria do The Spot

Na primavera de 1994, o time dos Estados Unidos se reunia para uma reunião muito aguardada. No encontro, a Adidas apresentou o uniforme que seria utilizado durante a Copa do Mundo, a primeira a ser realizada em solos estadunidenses. Em busca de respeito, os americanos esperavam algo digno, que fosse um marco. No entanto, logo no início da reunião, a expectativa dos americanos transformou-se em decepção.

A peita parecia ter sido idealizada no Paint por um jovem sob efeito de entorpecentes. Ela tinha uma estampa imitando jeans, as estrelas da bandeira americana e um vermelho gritante. Por mais esquisito que o uniforme aparentasse, era a fiel representação da maturidade do futebol nos Estados Unidos: cru, marcante e sem apego às tradições. Era tipicamente americano.

Nós éramos como os cowboys do mundo. Era como se usássemos Jeans” recorda o meia Tab Ramos.

Em 94, o futebol nos Estados Unidos evoluía em passos de formiga e sem vontade. A seleção já havia jogado a Copa de 90, mas voltou para casa com zero pontos na bagagem. Poucos jogadores americanos disputavam campeonatos competitivos e a liga local (MLS) só seria estabelecida em 93. Como país sede da Copa, a Federação Norte Americana queria desesperadamente chamar a atenção.

“A ideia era marcar a Copa de 94 como uma Copa Americana. Precisávamos marcar uma posição sobre o esporte nos Estados Unidos disse Hank Steinbrecher, diretor da Federação à época.

Wegerle não muito entusiasmado com os uniformes americanos. Fonte: Mike Powell

Essa marcação de território não era algo que gerava tanto orgulho para os jogadores. Na apresentação dos uniformes, o falante Yanks calou-se. “Todos os jogadores permaneceram quietos”, recorda o atacante Wynalda. Em seguida, os jogadores riram descontroladamente. O zagueiro Paul Caligiuri associou a camiseta com uma roupa de palhaço. Até mesmo o pouco conservador Alexi Lalas odiou. Mais precisamente, ele pensou que se tratava de uma pegadinha: “Estaria mentido se eu dissesse que os jogadores não estavam procurando as câmeras ocultas”.

Alexi Lalas em diversos formatos.

Lalas, que hoje é comentarista da ESPN, se recorda da pressão exercida sobre os jogadores na época. Eles precisavam evitar um vexame em casa e ainda pavimentar o caminho para uma potencial liga doméstica. Segundo ele, os uniformes atraiam atenção demasiada para os jogadores.

Vestir os jogadores com a bandeira americana como se eles fossem patriotas excêntricos pode parecer uma iniciativa arriscada, mas foi um movimento muito calculado. “De onde venho, se as pessoas reagem fortemente a algo, é uma coisa positiva. Se as pessoas se irritam, quer dizer que elas prestaram atenção.” dizia Peter More, Diretor da Adidas na época.

Moore era vivido no mercado, macaco velho. Quando trabalhou com a Nike em 80, ele desenhou o primeiro Air Jordan. Por conta do design polêmico, a NBA aplicava uma multa de 5 mil dólares para cada jogo que Michael Jordan atuasse com o icônico tênis. A Nike não apenas pagava a multa como também veiculava comerciais caçoando das multas. Ao final do ano de 85, o Air Jordan já havia gerado mais de 100 milhões de dólares em receita.

Anos depois, a Nike decidiu vestir um jovem André Agassi com um shorts jeans curioso. Apesar de não ter se consolidado como uma tendência, podemos dizer que foi o primeiro passo para a criação do famoso uniforme americano da Copa de 94.

Nike chama atenção vestindo a nova sensação do mundo do tênis com um shorts jeans.

Diferentemente do traje de André Agassi, a Adidas não podia vestir os jogadores com um jeans pesado por 90 minutos, mas não queria abrir mão da ideia de usar a representação do jeans. A empresa decidiu criar uma camiseta que se pareceria com a textura tipicamente americana. Moore conta o processo que os designers desenvolveram para criar o padrão das estrelas distorcidas: as estrelas foram colocadas sobre a camisa, arrastadas na superfície de uma máquina de xerox, scanneadas e aplicadas.

Mary McGoldrick, outra Diretora de design da época se lembra de quando mostrou esboços do uniforme para os colegas alemães: “Isso não tem a cara da Adidas”. Naquele ano, a empresa se caracterizou pela criação de uniformes diferentões. A Alemanha tinha o padrão tabuleiro de damas e a Nigéria tinha a estampa doidona, mas nenhum uniforme foi tão disruptivo quanto a camisa dos Estados Unidos em 94.

O saudoso Yekini utilizando o uniforme da Nigéria e Klinsmann e Rudy Voller com o manto alemão.

E poderia ser pior! Em 2011, Drew Gardner, executivo da Adidas na época revelou que a empresa cogitou a possibilidade de vestir o time com o padrão tie-dye em uma releitura do marcante uniforme de basquete da Seleção da Lituânia de 92.

Lituânia abaixo de zero.

A seleção americana utilizou o uniforme pela primeira vez em Março em um amistoso contra a Bolívia no Cotton Bowl. De Janeiro a Junho, a equipe jogou uma dúzia de vezes, incluindo uma vitória por 1 a 0 sobre o México em um Rose Bowl abarrotado com 91 mil torcedores. Nesse dia, o time usou o uniforme dois, que apesar de menos gritante, também era bacana. A camisa tinha listras vermelhas e brancas onduladas como uma bandeira dos Estados Unidos ao vento e os shorts eram ora vermelhos ora padrão jeans.

Fonte: Al Bello/Allsport/Getty Images

Com a Copa do Mundo se aproximando, os jogadores riam dos uniformes para não chorarem. em 94, a revista People contemplou o meia John Harkes como um dos homens mais bonitos do Mundo. Quando Tab Rabos, viu o segundo uniforme que seria utilizado contra a seleção Mexicana, disse “Até mesmo John Harkes não fica bonito com esse uniforme”. As frequentes piadas no elenco eram um mecanismo de defesa para não ter que lidar com a realidade: como eles seriam levados a sério pela comunidade do futebol com essa camiseta?

A resposta veio durante a Copa do Mundo. A equipe americana usou o uniforme estrelado nos três jogos da primeira fase. No primeiro, um empate por 1 a 1 com a Suiça. No segundo, a famigerada vitória sobre a Colômbia que deu fim à vida de Andrés Escobar. Após a partida, alguns jogadores comemoraram ostentando a bandeira americana.

Assim que vencemos a Colômbia, o uniforme passou a ser considerado legal! Não era como o laranja da Holanda ou as listras azuis e brancas da Argentina, mas subitamente, a estampa patriota começou a fazer sentido, a dar liga.” Cagliuri recorda.

Mais pragmático, Lalas sentenciava: “Você pode usar moleton e boné. Se estiver jogando bem, estará bem vestido.

Nas oitavas-de-final no dia 4 de Julho, a trajetória heróica foi interrompida por uma derrota por 1 a 0 para o Brasil. Gol de Bebeto.

“Eu te amo!” teria dito Bebeto para Romário após o gol.

No dia seguinte, a Adidas reportou as vendas de pelo menos 60 mil camisas por 60 dólares cada. “Poderíamos ter produzido um milhão de camisas na época. Elas vendiam como água”, disse Shelley Franks, Gerente de Produto da Adidas América na época.

Para os Estados Unidos, precisando se auto-afirmar na Copa que acabaria tendo o melhor público na história, isso significava a validação necessária. “Precisávamos chamar a atenção e esses uniformes ajudaram muito” relembra Steinbrecher ex-diretor executivo da Federação Americana de Futebol.

Alguns jogadores chegavam até a aquecer para os jogos usando jeans. Cagliuri participou de um comercial de Pert Plus com o uniforme. Alexi Lalas ainda guarda um desenho de um fã no qual ele aparece utilizando o uniforme que ele apelidou carinhosamente de “bela arrogância”.

Nas últimas duas décadas, a ascensão americana se confirmou. A seleção participou de todas as Copas do Mundo desde então, alguns jogadores atuam no exterior e a MLS está se consolidando como um campeonato atrativo comercialmente, mas apesar do crescimento, os Estados Unidos ainda tentam se encaixar no alto escalão do futebol mundial.

Com raras exceções, como o segundo uniforme da Copa de 2014, os uniformes foram todos bastante tradicionais. A Nike, que assumiu em 95 experimentou diferentes desenhos, padrões e escudos, mas não conseguiu criar nada tão criativo ou estranhamente icônico como o uniforme jeans de 94.

Steinbrecher, diz que ainda vê frequentemente torcedores utilizando o uniforme jeans nos jogos da Seleção. Sua opinião sobre o modelo? “Eles são feios como o pecado, mas sem dúvida, funcionam”.

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