Guerrilheiro chuta de bico

O futebol na vida de Carlos Marighella

Fábio Felice
Sem Firulas
6 min readJun 4, 2019

--

A quatro gols do milésimo, Pelé tentava alcançar a marca histórica em mais um clássico alvinegro no Pacaembu. Santos e Corinthians se enfrentavam com os portões abertos numa partida adiada da 13ª rodada do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, o Robertão, em novembro de 1969. No intervalo, a multidão nas arquibancadas recebeu um inusitado anúncio feito pelos auto-falantes do lotado Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho. A menos de cinco quilômetros dali, o DOPS-SP havia liderado uma emboscada que resultara no assassinato do inimigo número um da ditadura militar. O então líder da Ação Libertadora Nacional, o comunista, guerrilheiro e rubro-negro baiano, Carlos Marighella.

Filho de um italiano da Emilia-Romagna com uma negra baiana descendente dos malês, Marighella nasceu em Salvador em 1911. Ainda criança, o pequeno torcedor do Esporte Clube Vitória costumava fugir de casa para jogar bolas com os vizinhos. Preocupada com os sumiços do filho, Dona Maria Rita do Nascimento começou a amarrar os tornozelos do menino numa mesa, para que ele não escapasse, como conta o jornalista Mário Magalhães, autor de uma biografia publicada pela Companhia das Letras: “Eis que uma vizinha viu a cena e exclamou: ‘Dona Rita, não faça isso! Criança deixada assim assim acaba presa de verdade.’”

A paixão pelo futebol cresceu junto com a criatividade do garoto. A falta de dinheiro para comprar chuteiras viraria solução na oficina do pai, Augusto Marighella. Quando chamado para algum baba (a “pelada” baiana), Carlos corria até o trabalho do pai e pregava cravos na sola das botinas usadas do dia a dia. Antes de revolucionário, nascia ali um respeitoso zagueiro de 1,78m.

As qualidades de beque puderam ser aferidas quando Carlos Marighella, já membro do Partido Comunista Brasileiro, foi preso em São Paulo em 1939 e mandado para Fernando de Noronha em 1940. A ilha havia sido transformada em presídio político por Getúlio Vargas depois da instauração do Estado Novo, anos antes, e recebia os presos considerados subversivos (de comunistas a integralistas nazi-fascistas). Lá, ao lado de outros militantes de esquerda, o baiano ajudou a fundar o Grêmio Atlético Brasil, um clube desportivo destinado à prática de vôlei e de futebol. O primeiro não o empolgava. Já o segundo, lhe rendeu o apelido de Bicão Siderúrigico.

Dono de um chute forte fortíssimo, sempre de bico, Marighella dava empolgadas palestras aos presos sobre assuntos relacionados a siderurgia. Todos queriam o Bicão Siderúrgico no time, como conta Magalhães: “Relatos mostram que ele não era um zagueiro violento, mas também não tinha tanta técnica, não chegava a ser um Franco Baresi”.

O Grêmio Atlético Brasil, em Fernando de Noronha

Em 1945, com o fim do Estado Novo após a 2ª Guerra Mundial e a anistia para os presos políticos, Carlos Marighella voltou para a Bahia e no ano seguinte foi eleito deputado federal constituinte, tendo contribuído para a formulação da Constituição Brasileira de 1946. Durante a campanha, um dos pontos da sua plataforma era a construção de um estádio para a cidade de Salvador. Em 1951, foi inaugurado o Estádio da Fonte Nova, por coincidência, ao lado da Ladeira da Fonte das Pedras, próxima ao Dique Tororó, onde ele nasceu. “Marighella era um fanático por futebol”, conta Clara Charf em documentário sobre o marido. “Ele sempre acreditou no esporte como um importante instrumento para união das pessoas”.

Com a cassação do registro do PCB em 1947, pelas mãos do então presidente Eurico Gaspar Dutra, Marighella viveu na clandestinidade até o fim da década de 50, com a chegada de Juscelino Kubitschek à presidência. Nesse período, iniciou forte amizade com o também comunista João Saldanha (futuramente treinador da Seleção Brasileira), a quem Marighella conferia o papel de mensageiro nos motins e greves de trabalhadores organizadas por ele.

Simpatizante do Flamengo no Rio de Janeiro e do Corinthians em São Paulo, Carlos Marighella se encantava com o futebol. Em 1958, a conquista brasileira na Copa do Mundo o inspirou a escrever um poema em homenagem a Mané Garrincha, um dos craques do torneio disputado na Suécia.

A Alegria do Povo

Uma grande jogada

pela ponta direita,

o balão de couro

como que preso no pé.

Um drible impossível…

Garrincha sai por uma lado,

e o adversário se estatela no chão.

Gargalhada geral,

o Maracanã estremece…

Lá vai o ponta seguindo,

os holofotes varrendo de luz o gramado,

o balão branco rolando,

seguro nos pés do endiabrado atacante.

Voa Garrincha,

invade a área contrária,

indo até à linha de fundo

para cruzar…

E as redes balançam,

no delírio do gol.

Garrincha! Garrincha!

A alegria do povo,

no balé estonteante

do futebol brasileiro.

Garrincha havia sido treinado por João Saldanha no Botafogo, que trouxe outro jogador para o círculo da turma do PCB. Em 1961, ele e Marighella organizaram a publicação de um jornal em apoio ao Marechal Henrique Lott, que disputava a presidência do país com Jânio Quadros. O Hoje tinha Marighella na organização e Saldanha na tesouraria. Na coluna esportiva, textos do meio-campista Didi, eternizado pela Folha Seca.

A perseguição aos comunistas, que havia sido relativamente afrouxada depois que JK assumiu a presidência, voltou com tudo logo após o golpe militar de 1964. No mês seguinte à tomada de poder pelas forças armadas, Marighella tomou um tiro num cinema na Tijuca e foi preso. Solto em seguida, abraçou novamente a clandestinidade, dessa vez com o advento da luta armada. Em 1967, criou a ALN, a Ação Libertadora Nacional, movimento de guerrilha urbana contra a Ditadura Militar.

Várias das investidas da ALN envolviam assaltos a bancos e carros-fortes, a fim de financiar as ações do movimento. E uma delas quase se deu no Maracanã. Em 1968, inspirado no filme O Grande Golpe, de Stanley Kubrick, Marighella chegou a planejar um roubo à bilheteria do Estádio Mário Filho. Mas abortou o plano, como conta Mário Magalhães: “Eles desistiram pois teriam que carregar sacos de dinheiro muito grandes, já que os ingressos para os jogos eram comprados com notas pequenas”. O que Marighella não fez, o cinema retratou. No ano seguinte, o filme Máscara da traição, do cineasta baiano Roberto Pires e estrelado por Glória Menezes e Tarcísio Meira, conta a história de um roubo bem-sucedido da renda de um clássico no Maracanã, como o autor destaca na biografia.

Capa da Veja em 20/11/1968

A caça a Carlos Marighella atingiu níveis nacionais quando ele foi capa da Revista Veja, ainda em 1968, acompanhado da manchete PROCURA-SE. O conteúdo da reportagem trazia: “De pé diante de um balcão de botequim no Posto Quatro de Copacabana, tomando batida de limão, Carlos Marighella prestava o seu depoimento: ‘A seleção brasileira de futebol este ano está muito fraquinha’” (VEJA, 20/ 11/68, p. 15). Sobre o crítico de futebol em Copacabana, Magalhães comenta: “Ele era abstêmio, como poderia ser um apreciador de batida de limão?”.

O cerco aumentou ainda mais quando o AI-5 foi decretado em dezembro daquele ano. E se fechou na noite de 4 de novembro de 1969, numa emboscada na Alameda Casa Branca, em São Paulo, perto do gramado onde Pelé e Rivellino se enfrentavam.

Os primeiros fotógrafos que chegaram ao local do assassinato, e puderam constatar a farsa liderada pelo delegado do DOPS-SP Sérgio Fleury, foram justamente os que estavam acompanhando o clássico alvinegro e abandonaram o local da partida. Eles souberam da notícia antes do locutor do estádio anunciar: “Foi morto pela polícia o líder terrorista Carlos Marighella”, o que fez ambas as torcidas aplaudirem, segundo relatos de quem esteve naquele confronto de casa cheia no Pacaembu. O Corinthians fez 4x1 no Santos e Pelé seguiu com seus 996 gols na carreira.

--

--