Nunca mais ria do Zaire da Copa de 74

Relembrando a data de um ano da morte de Mwepu Llunga, um dos jogadores africanos mais injustiçados de todos os tempos.

Guilherme Dorf
Sem Firulas
5 min readMay 5, 2016

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Na Copa de 74, Mwepu Llunga recebe cartão amarelo após um lance inusitado

No dia 05 de Maio de 2015, perdemos um dos jogadores africanos mais célebres de todos os tempos. Em sua homenagem, achamos justo resgatar e, porque não dizer, retificar uma história que durante anos foi mal contada. O texto foi traduzido livremente pela equipe do Sem Firulas do site In Bed With Maradona e postado originalmente no Blog da Central3

Em 22 de Junho de 1974, o Brasil vencia tranquilamente um jogo da Copa do Mundo contra a já eliminada equipe do Zaire. Enquanto Rivellino e Jairzinho discutiam sobre quem bateria uma falta na entrada da área, aconteceu um lance que transformou o jogo em uma das partidas mais memoráveis na história das Copas.

Se Mwepu Llunga tivesse recebido royalties a cada vez que o vídeo em que ele aparece saindo correndo da barreira e dando uma bica sem sentido na bola fosse exibido, ele teria ficado milionário. O vídeo é conhecido, mas a história que o cerca é obscura.

O vídeo que aparece em todas as compilações de humor futebolístico.

Infelizmente a teoria que se disseminou por anos foi a de que os jogadores africanos eram tão ingênuos futebolisticamente nessa época que mal sabiam interpretar as regras do jogo.

Para entender melhor a questão precisamos lembrar do presidente do Zaire na época, Joseph Mobutu. O líder do país era um ex-jornalista e grande entusiasta de esportes, tendo conseguido hospedar a luta do século do boxe entre Mohammad Ali e George Foreman no país no mesmo ano de 74. Para a seleção de futebol, o presidente prometeu carros, casas e férias no exterior para os jogadores caso eles conseguissem a vaga para a Copa do Mundo de 1974.

A luta entre Muhammad Ali e George Foreman no Zaire em 74 ficou conhecida como Rumble in the Jungle.

Depois que a seleção obteve a classificação heroica - a última equipe africana em uma copa havia sido o Egito em 1934 - apenas alguns jogadores receberam parte dos incentivos prometidos.

Posteriormente, a seleção chegava à Copa do Mundo no mesmo grupo que Escócia, Iugoslávia e Brasil confiando na dupla dinâmica do ataque. Adelard Mayanga, apelidado de “o brasileiro” pelos seus recursos técnicos e Mulamba Ndaye eram os responsáveis por carregar o time na campanha milagrosa.

O Zaire começou jogando bem contra a Escócia, mas acabou cedendo a derrota por 2 a 0. Após o jogo, o elenco recebeu a notícia de que não seria pago, e furiosos, os jogadores ameaçaram entrar em greve.

Como se fala "moralizador" em francês?

Apesar das divergências, a equipe entrou em campo para o segundo jogo contra Iugoslávia. No entanto, a performance foi pífia, bem distante da atuação inicial.

Estranhamente, o técnico Blagoje Vidinic substituiu “o brasileiro” e o goleiro titular durante a partida ajudando a construir o placar de 9 a 0 para a Iugoslávia.

Quando perguntado sobre os motivos das substituições, o técnico afirmou que era um “segredo de estado” acelerando teorias da conspiração que sugeriam desde que o técnico (nascido na Iugoslávia) estaria ajudando o seu país de nascença até a possibilidade de oficiais do governo estarem exigindo a escalação de reservas que eram seus amigos no time.

A derrota também não foi bem digerida pelo presidente Mobutu que tomou ações diretas sobre o time e enviou guardas para ameaçar o elenco em caso de nova derrota por goleada diante do Brasil.

"Após a partida contra a Iugoslávia, os guardas do presidente fecharam o hotel para jornalistas e nos avisaram que se perdêssemos por 4 gols para o Brasil não retornaríamos para a casa”. — Mwepu Llunga em entrevista para a BBC.

Alguns dias depois, o momento clássico. Perdendo por 3 a 0, aos 40 minutos do segundo tempo, os jogadores do Zaire viam de perto uma enorme possibilidade de não retornarem para suas casas tendo o governo como patrocinador da ação.

Quando entendemos o contexto, a corrida de Mwepu em direção à bola parece muito menos com uma ausência cômica de entendimento das regras e muito mais como um ato desesperado de sobrevivência. Por vezes exibido em uma coletânea de “momentos engraçados do futebol” essa cena representa praticamente o oposto: um exemplo do que pode acontecer quando jogadores viram uma brincadeira para ditadores.

Os "Leopardos do Zaire" em ação contra o Brasil em sua única Copa do Mundo.

Nenhum dinheiro prometido foi pago aos jogadores e o governo parou de financiar a equipe logo após a Copa do Mundo. O Zaire (agora chamado de República Democrática do Congo) nunca mais chegou a uma Copa.

A maioria dos jogadores da equipe viveu o resto de suas vidas na pobreza, impedidos de jogar em clubes do exterior. Ndaye Mulamba, possivelmente o maior jogador da história do Zaire mendigou nas ruas da África do Sul até o final da sua vida.

“Na Europa, eles homenageiam os futebolistas, enquanto aqui todos te conhecem enquanto você joga, mas te esquecem quando você para”. — Ndaye Mulamba

O caminho África-Europa era impossível para Mulamba e seus conterrâneos em 1974, mas as suas palavras mostram porque esse caminho é tão desejado pelos jogadores africanos até nos dias de hoje.

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