O novo formato de Copa do Mundo favorece a armação de jogos

Guilherme Dorf
Sem Firulas
Published in
6 min readJan 10, 2017
Até hoje a Argélia não se esquece da Copa do Mundo de 1982.

Esse texto foi livremente traduzido a partir do post do usuário gnorrn no Reddit.

Ontem, A FIFA praticamente sacramentou a mudança no formato da fase de grupos a partir da Copa do Mundo de 2026. Em resumo:

- 16 grupos
- Cada grupo com 3 times
- Os dois primeiros times de cada grupo se classificam
- Jogos da fase de grupos não terminam empatados. O vencedor da partida será determinado em decisão de pênaltis como aconteceu no Paulistão 2001.

Existem diversas objeções com relação a esse novo formato que vão desde a diminuição do nível técnico do torneio até a maior abertura para potenciais desvios de verba, mas vou me ater a um aspecto pouco comentado: a possibilidade de maior incidência de jogos nos quais não existe motivação de nenhum dos dois lados para vencer, o conluio ou o popular jogo de comadres.

A desgraça de Gijón — exemplo de conluio

O caso mais famoso de um conluio em uma Copa do Mundo aconteceu em 1982. A Austria jogava contra a Alemanha Ocidental no último jogo do grupo. Antes do jogo, A tabela mostrava:

Assim como em 2014, a Argélia vinha fazendo uma boa Copa do Mundo em 1982. A vitória valia dois pontos e o critério de desempate era saldo de gols.

Por conta da situação do grupo, uma vitória da Alemanha Ocidental por 1 ou 2 gols classificaria tanto a Alemanha Ocidental quanto a Austria. E foi exatamente isso o que ocorreu. A descrição do jogo:

Após dez minutos ofensivos, A Alemanha Ocidental chegou ao seu gol através de Horst Hrubesch. Após o gol, o time com a posse da bola passou a trocar passes em sua metade do campo e recuar a bola para o goleiro. Bolas passaram a ser chutadas para cima sem nenhum propósito. Os jogadores davam poucos carrinhos e nem tentavam acertar o gol. O único jogador austríaco que buscava o jogo era Walter Schachner, enquanto do lado alemão apenas Wolfgang Dremmler parecia jogar sério.

Todos os jornalistas criticaram duramente a atitude dos dois times. Eberhard Stanjek, comentarista alemão, parou de narrar o jogo em determinado momento. Robert Seeger, comentarista austríaco, sugeriu que os telespectadores desligassem a TV. George Vecsey do NY Times afirmou que os times pareciam estar trabalhando em conjunto, mas que seria impossível provar algo. O jornal espanhol El Comercio publicou a ficha técnica do jogo no caderno policial.

Torcedores argelinos pedindo o seu dinheiro de volta ao testemunharem a Desgraça de Gijón

Os torcedores tampouco gostaram da partida e demonstraram repúdio aos jogadores. Gritos de “Fora, Fora”, “Argélia, Argélia” e “Que se beijem” foram entoados pela torcida espanhola. O jogo foi criticado até mesmo pelos fãs alemães e austríacos que aguardavam um jogo à altura do ocorrido na Copa de 1978 quando a Áustria bateu a Alemanha Ocidental na partida que ficou conhecida como o Milagre de Córdoba.

A tabela final do grupo ficou:

Alemanha Ocidental e Áustria classificadas.

Esse conluio só foi possível porque a Argélia já havia jogado o seu último jogo no dia anterior. Como a Áustria e a Alemanha Ocidental já sabiam a pontuação e o saldo final da Argélia, eles puderam acordar (de maneira implícita) um resultado que beneficiaria mutuamente os dois lados. Se o último jogo da Argélia contra o Chile tivesse sido jogado simultaneamente ao Áustria e Alemanha, esse conluio não seria possível.

Em todas as Copas do Mundo seguintes, os dois últimos jogos da fase de grupos foram jogados simultaneamente. Conluios são impossíveis de acontecer no formato atual da Copa do Mundo (grupos com 4 equipes, saldo de gols como desempate e dois últimos jogos simultâneos).

Em 2014, a torcida argelina relembrou o feito da equipe de 1982.

A nova proposta: grupos com 3 times.

O calendário de um grupo com três times supostamente funcionará da seguinte maneira:

  • Jogo Dia 1: Time A x Time B
  • Jogo Dia 2: Time A x Time C
  • Jogo Dia 3: Time B x Time C

Existe um problema óbvio com esse calendário: 3 é um número ímpar, o que significa que algum time necessariamente não poderá jogar a rodada final simultaneamente aos demais.

Por isso, a solução adotada pela FIFA depois da Tragédia de Gijón em 1982 — a de colocar todos os times para jogarem simultaneamente o jogo final da fase de grupos — não pode ser aplicada em um grupo de 3 equipes. Um time (o time A no exemplo acima) não jogaria no último dia e poderia eventualmente ser prejudicado em um conluio.

Como forma de evitar o conluio, a FIFA adotará as penalidades na primeira fase em caso de empate.

“Se todos os jogos tem um vencedor, não existe a possibilidade de dois times se beneficiarem mutuamente no último jogo da fase de Grupos.” — Declaração da FIFA.

No entanto, esse artifício não evita o conluio.

Como um conluio pode acontecer em um grupo de 3 times

A FIFA sugere que todos os jogos tenham um vencedor e um perdedor. A vitória deve seguir valendo três pontos.

Tabela

  • Jogo Dia 1: Time A 1xo Time B
  • Jogo Dia 2: Time C 2x0 Time A

Antes do jogo final, teríamos a seguinte tabela:

No jogo final, o time B enfrentaria o time C. O time C pode não endurecer e perder por 1 a 0 para o B, resultando na seguinte tabela:

Como podemos ver, C e B se aproveitariam do fato de jogar o último jogo já cientes de todos os resultados do A.

Qual é a chance disso acontecer?

Um possível conluio pode acontecer quando um time termina sua campanha com uma vitória, uma derrota e zero ou menos gols de saldo. Como exercício e para provar que a adoção dos pênaltis como desempate não resolve o problema, ilustrarei uma situação na qual todos os jogos do grupo são decididos nas penalidades.

  • Jogo dia 1: A 0 x 0 B(A vence nos pênaltis)
  • Jogo dia 2: C 0 x 0 A (C vence nos pênaltis)
  • Jogo dia 3: B 1 X 1 C(B vence nos pênaltis)

Uma rápida conta de padaria sugere que a situação de um possível conluio ocorrerá em 25% das vezes. É uma possibilidade clara!

Se tem algo bom que a FIFA fez nos últimos anos foi eliminar a possibilidade de um conluio a partir da Copa de 1986. A proposta de grupos de 3 times é um retrocesso para um universo no qual o conluio não somente é possível, como provável em pelo menos um dos 16 grupos.

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