Se o erro for a essência do futebol, tem algo MUITO ERRADO com o esporte
O uso da tecnologia de vídeo no futebol divide opiniões. De qual lado você está?
A estreia oficial do árbitro de vídeo foi polêmica. Para alguns, desastrosa. O recurso, que permite ao juiz da partida rever um lance duvidoso em uma telinha na lateral do campo, foi utilizado para assinalar um pênalti a favor do Kashima Antlers contra o Atlético Nacional na semifinal do Mundial de Clubes. E praticamente decidiu a partida. Apesar de o time japonês ter jogado um futebol de muita entrega e organização, é pouco provável que os dois outros gols aconteceriam caso o clube colombiano não tivesse se lançado ao ataque buscando o empate no fim do segundo tempo.
O acontecimento gerou muita discussão e separei as principais críticas que li por aí:
- Ah, nem vem! Não foi pênalti, não. O cara tava impedido! De que serve usar o recurso de imagem pra marcar falta e não se atentar à posição de impedimento?
- Pelo amor de Deus, quanto tempo até marcar o pênalti. Se demorar esse tempo todo pra conferir um lance, o futebol vai perder seu dinamismo!
- Pô, todo jogo tem essas faltinhas assim. Se for marcar tudo que acontece vai ter pênalti o tempo todo!
- Meu Deus! O erro é a essência do futebol! Quer um futebol sem erros? Coloquem 22 robôs em campo e assistam a um futebol perfeito!
Quanto ao tópico 1, a resposta é clara. Se foi pênalti ou não, a discussão é de arbitragem, pouco tem a ver com o recurso em si. Vi ex-árbitros se contradizerem na TV: uns falaram que o fato de o jogador estar impedido não influenciava na marcação do pênalti, outros, que deveria ser levado em consideração. Essa discussão foge desse texto, vou deixar os caras se matarem na TV pra gente saber a resposta. A mim resta dizer que os árbitros devem estar devidamente treinados para avaliar também a situação de impedimento quando forem fazer a conferência na imagem.
Já em relação ao tópico 2, acredito que exista certo exagero. O tempo total desde o toque do volante colombiano no japonês até a marcação do pênalti foi de 2 minutos e 17 segundos. Não foi tanto assim, menos até que muita discussão entre jogadores e árbitros após a marcação (ou não marcação) de um lance polêmico. Mas tenho que concordar que é inconveniente para quem está assistindo. O pior, acredito eu, foi o fato de o árbitro só ter sido notificado da possibilidade de pênalti quando a bola, depois do desenrolar do lance, saiu pela lateral (45 segundos após o contato). O que se passou até a marcação definitiva do pênalti foi uma cena bizarra, onde ninguém sabia direito o que se passava.
O tempo parado necessário ao uso da tecnologia em questão é um pequeno custo que a gente paga pela justiça, mas o excesso, nesse caso, é um problema característico de uma novidade. Testes já foram certamente realizados, mas o verdadeiro teste é quando a tecnologia é aplicada na prática. Com certeza há margem para melhorias no uso do recurso de vídeo e elas irão ocorrer a partir de problemas identificados durante sua aplicação. É possível avisar o árbitro mais rapidamente, é possível conferir as câmeras mais rapidamente. É possível checar tudo isso em até 1 minuto se todo mundo estiver preparado.
Em relação ao tópico 3, vou filosofar um pouco. De fato existem “faltinhas” assim o tempo todo. Em lances de escanteio então, nem me fale. Agarrões, puxões de camisa, rasteiras… Mas será que não estamos errados em aceitar isso como parte do jogo? Será que isso não acontece justamente pelo fato de ser um lance difícil de ver e de avaliar na confusão de algumas jogadas? Agora que temos um recurso, podemos marcar essas faltas com confiança e, ao mesmo tempo, acabar com elas.
A última frase pode parecer contraditória, mas a parte da filosofia que eu havia falado entra pra valer é aqui. Vou simplificar pra não ficar entediante. O filósofo francês Michel Foucault, em sua obra Vigiar e Punir, defende que a forma mais avançada de controle é a partir da sensação de que se está sendo vigiado o tempo todo. Apesar de ter sido pensada para o controle da sociedade e ser, de certa forma, cruel, o paralelo cabe bem no contexto do futebol. A partir do momento em que o jogador compreende que têm câmeras em todo local e que elas estão sendo utilizadas para auxiliar o árbitro a marcar as infrações que acontecem, é bastante provável que se pare de fazer as tais “faltinhas” dentro da área e que o jogo fique, portanto, mais limpo, mais jogado, mais dinâmico.
Por fim o tópico 4. E é a minha hora de me exaltar. Meu Deus, não é possível que alguém pense que o erro é a essência do futebol! Não é possível! O erro resulta em injustiça, resulta em acusações de favorecimento, resulta em projetos inteiros jogados no lixo… A essência do futebol, na verdade, é o improvável. É o improvável que permite um time dê um chute a gol e ganhe de um time deu vinte. E acertou três bola na trave. E teve 70% de posse. É o improvável que permite tudo mudar nos acréscimos, quando um time marca uma, duas ou até três vezes para virar o placar. É o improvável, meu amigos, que nos faz chorar. De alegria ou de tristeza. Porque o erro da arbitragem, por outro lado, enche o nosso coração é de raiva, quando somos prejudicados. E de vergonha, quando somos favorecidos. Aquele que fala “roubado é mais gostoso”, na verdade, solta um grito desesperado pra tentar convencer a si próprio de algo que nem ele mesmo acredita. Ele inventa um sabor pra suprimir a vergonha de ganhar um título sem ser merecedor. Como quem coloca ketchup numa comida intragável só pra mandar goela abaixo.
Olha, acho que o grande erro da FIFA foi ter testado o árbitro de vídeo em uma competição internacional e importante como o Mundial de Clubes. Talvez eles quisessem dar uma demonstração pra todo o planeta do quanto o recurso pode ser útil. Mas, infelizmente, o tiro saiu pela culatra… E, num estalo, surgiu uma legião de críticos à tecnologia se aproveitando de um problema em seu primeiro uso oficial. Espero que esses se lembrem das vezes em que seu time foi prejudicado por erros que, apesar de fazerem parte da natureza humana, não nos impedem de buscar artifícios para minimizá-los. Afinal, também é da natureza humana dormir ao escurecer, mas isso não te impede de virar a noite pra curtir aquela baladinha. Muito menos te impediu de acordar às 3h da madrugada pra assistir ao Brasil vencer a Inglaterra na Copa de 2002 e dar mais um passo para a conquista do Penta.