– aos mortos

Uma peça de prosa poética

giulia
sem mote.
3 min readMay 16, 2021

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Ilustração: Maria Eduarda

morto é todo aquele que não teve a chance de viver. morto é todo aquele que não tem a chance de viver.

[edital de proclamas]: Augusto, 46 anos. causa da morte: ESQUECIDO. (trabalhou na mesma empresa por 7 anos, mas ninguém se lembrava de seu nome.)

o labirinto pra quem percorre é um caminho infinito, mesmo que pra seu inventor pareça medíocre.

a maze, to amaze.

onde nossas vidas são fadadas a se encontrar?

vigio meu tempo para que me guie ao teu,

cansada de caminhar sozinha.

invoco os mortos porque os vivos sei que me responderão. mas somente aos mortos interessam as minhas dúvidas. convoco-os, reúno-os. que eu possa ouvir a sua resposta antes de terminar o labirinto que me espera.

um metrô cheio de horários diferentes, de pressas diferentes, motivos diferentes, vontades, ambições, sobrevivências. qual deles vive e qual deles morre? qual deles lembra da morte e qual deles lembra da vida?

o que é a vida pra quem vive de embalagem?

o que é a morte pra quem veio sem embrulho?

a moça com a bolsa pesada tem três filhos, nenhum deles lembra dela; passa raspando e pega o metrô no tempo que precisa, no tempo que a mata.

tempo tempo tempo. morte morte morte. vida vida vida.

o tempo significa mais morte ou significa mais vida?

um destino ao qual não se chegou, o suco que alguém não terminou, o sorvete que alguém derramou, os olhos que ninguém olhou, os ventos que ninguém soprou. a chuva que ninguém molhou. a vontade que ninguém criou. a força que ninguém forçou.

era tudo morto ou era tudo vivo? é um resquício de vida ou um aviso de morte?

pra quem diz que o labirinto nunca teve início, qual o sentido de continuar rodando?

[edital de proclamas]: Maia, 23 anos. causa da morte: APAGADA. (cursou medicina, mas o pai não era rico. ninguém chamou ela pra festa da formatura.)

o que lhe espera no labirinto? o desejo e o medo de ser esquecido, ambos poderes que não podem se dar ao luxo de existir sozinhos.

labirinte-se, mas não se perca.

o que é inanimado também é morto ou só não teve a chance de viver? e quem não tem a chance de viver, é inanimado ou morreu cedo?

prédios altos demais pra quem é muito pequeno não entrar. bancos centrais levantados por vendavais de dinheiro que nunca trabalharam. o desejo de que o outro não tenha, não veja, não seja. o amor que esvazia. a devoção que cega. o orgulho de ser ignorante. a falta de empatia e o excesso de autoconfiança. vestidos formais na feira de terça-feira. sapatos caros demais vendidos por mulheres descalças. corações perdidos em florestas de espelhos encantados e mentes caçadoras de defeitos disfarçados. qual é o limite do teu labirinto?

[edital de proclamas]: João, 12 anos. causa da morte: ADULTO. (a mãe o fez crescer antes da hora: não pôde ser criança. não teve amigos para brincar.)

o labirinto é uma vergonha. lembre-se disso todos os dias. quando não olhar, sentir, ouvir. até que não haja mais nada para ouvir, sentir nem olhar.

se eu desejo a minha morte?

não, desejo a tua.

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